quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Dentes e dádivas

Até eu engravidar nunca tinha tido cáries. Adorava ver a cara surpresa dos dentistas e mais ainda a cara invejosa de minhas irmãs que me viam sair serelepe da temida cadeira após uma rápida aplicação de flúor, e deixá-las lá ao som de um motorzinho aterrorizante, enquanto dava tchauzinho com uma barra de chocolate na mão.

Uma vez uma dentista me falou: "É um tipo de bactéria que protege seus dentes. Quando começar a beijar na boca você com certeza vai conhecer o que é cárie." Mas a profecia - ou praga, simplesmente - não se cumpriu. Minhas bactérias deviam ser mais fortes que as dos meus namorados de modo que meus dentes permaneciam pefeitos. Minha higiene bucal sempre foi apenas regular, nunca um exemplo a ser seguido ou filmado para comerciais de creme dental. Para desespero das minhas irmãs, elas se esforçavam bem mais nesse sentido que eu, mas era eu quem ria do motorzinho.

Aí veio Vinícius. Com quatro meses de gravidez fiz minha primeira restauração dentária e arranquei um siso. O bebê já era guloso desde o ventre: me roubava o cálcio com a avidez de quem anunciava que iria mamar freneticamente por mais de um ano. E não me digam que não tem nada a ver, que ele não retira o cálcio dos dentes e outras coisas do gênero que li de especialistas por aí. Só quem engravidou sabe o estrago que uma placenta ávida pode fazer no corpo de uma mãe que tem que se manter bem nutrida e com IMC normal. Comer, comer, comer: dentes a menos, pança a mais. O dentista me alertou: "Você está cheia de cáries! Volte aqui após o parto para fazermos um tratamento!"

Um ano depois eu voltei e... meus dentes estão perfeitos. Que bactéria que nada. O dentista explicou que a boa saúde de meu oganismo aliada a um forte componente genético fez com que os dentes fossem mineralizados novamente antes das cáries se desenvolverem. De modo que não será preciso fazer nenhuma intervenção. Ele elogiou minha oclusão (expliquei que nunca usei aparelho ortodôntico) e minha higiene bucal, ao que eu modestamente repliquei que era mais sorte que diligência, e despediu-me, profissionalmente feliz que meus genes não sejam dominantes.

Tenho problemas bem chatos que não são muito comuns: meu olho esquerdo tem mais de nove graus de miopia, minha rinite alégica abrange uma gama infindável de elementos respiráveis, meu nervo ciático incomoda desde os 28 anos. Mas o fato de ter dentes fortes e benevolentes supera todos eles. Muito interessante como a ausência de cáries me faz sentir uma pessoa especial, destacada dentre a multidão, divinamente agraciada. Não lembro de nenhuma outra característica física, intelectual ou emocional que me faça sentir algo parecido.

E este post, que não é mais uma reflexão biológica que teológica, não está aqui só para deixar para a posteridade o registro áureo de minha super arcada dentária. Também quer dizer que mesmos os estragos que a vida faz (na verdade, que nós fazemos na vida) e que julgamos muitas vezes irreparáveis, podem se mostrar surpreedentemente... sanáveis. Uma cárie diagnosticada pode levar a mente a divagar insone por vingativos barulhos de motorzinhos, gargalhadas de irmãs, relatos de cirurgias dentárias que remetem a torturas medievais. Um pecado também pode deixar a sensação de que teremos que amargar consequências terríveis, que machucaremos pessoas inocentes, que feriremos pessoas que amamos, que o mundo nos verá cobertos de lama a desfilar pelas ruas da cidade, que nunca mais seremos a mesma pessoa outra vez.

Bem, isso de fato pode ocorrer. O pecado pode trazer males indizíveis. Mas já vi olhares de pessoas que denunciavam sentir tudo isso mesmo sem ter passado por tudo isso. Pessoas que carregavam em seu olhar triste o cinza púmbleo de um culpa punitiva. De tão púmbleo, o cinza faz decair o olhar: "Sou miserável, pequei e vou sofrer." Sem levantar o olhar a pessoa cria em sua mente um cenário de acusação e medo para cercá-lo. Sem enxergar as faces e vozes que se aproximam dele, pinta-lhes com capuz de carrasco, muito mais interessado em purgar sua culpa que ver a realidade. Sim, somos miseráveis, sim, somos pecadores, mas não temos necessariamente que sofrer. Um pecado pode ser sanado sem dor? Como assim? Pode? Pode. "Verdadeiramente Ele tomou sobre si as nossas fraquezas, e carregou as nossas dores." (Isaias 53:4). Cristo pagou na cruz as dores de todos os pecados passados e futuros. Não aceitar isso é não entender o plano de salvação. O pecado deve causar no coração converso o arrependimento, não a auto-flagelação. Se a solução fosse impingir a si sofrimento, Judas não teria tido um fim tão triste.

Nem sempre podemos apagar o rastro de um ato pecaminoso, seja pela simples lei da ação e reação, seja pela malignidade de Satanás, que faz realmente de tudo para que o pecado tenha o maior alcance possível. Mas também não podemos apagar a força do sangue de Jesus sobre nossas vidas. É o poder de Deus, e não o poder do pecado, que deve ditar nossa atitude perante a vida, as pessoas e os nossos atos subsequentes ao erro. Cavar mais fundo o poço não vai nos redimir porque o auxílio só pode vir de cima. Revolver-se no lamaçal do pecado e o expor a todos os passantes é inútil quando o sangue do Cordeiro espera para nos limpar.

Eu não tenho a mínima idéia do mecanismo pelo qual um organismo refaz um dente onde certa vez se instalou uma cárie. Também não consigo entender a forma pela qual um Deus justo se faz amor e nos perdoa, sana e reintegra à perfeição sem que para isso tenhamos necessariamente que sofrer longamente, penar, machucar a nós mesmos ou a outras pessoas. Mas desconfio que isso não é mesmo para ser entendido. Isso, meus seis leitores, é Graça.

Um comentário:

Unknown disse...

MInha querida irmã,verdadeiramente não sabemos por que Deus nos amou,mas sabemos que não só Ele nos amou,como nos ama e nos redime de todo o pecado,seja Ele qual for.Basta que nos arrependamos.
Sua reflexão é belíssima,inteligentíssima e epiritualíssima!
Deus continue te abençoando!

Te amo Lu!
Kellynha.