sábado, 24 de agosto de 2002

Decifre pessoas (e economize R$ 35)

O fenômeno aconteceu quando uma das estagiárias chegou com um livrinho verde embaixo do braço e o colocou na estante onde guardamos nosso material. Todo mundo que chegava e saía via o livro lá, verdinho, e por algum motivo, irresistivelmente magnético. Na mesma semana, já havia fila de espera para pegar o livro emprestado, todo mundo que o via queria ler. A explicação para tamanha atração estava no título: “Decifrar pessoas”. O livro de Jo-Ellan Dimitrius e Mark Mazzarella é um pequeno manual que ensina a descobrir as características das pessoas através da observação de seu comportamento, tom da voz, aparência (inclusive o corte de cabelo), entre outras “dicas” aprendidas em experiências práticas que a autora vivenciou acompanhando mais de seiscentos processos judiciais nos Estados Unidos.

Eu, que desde sempre me considero uma observadora apaixonada do ser humano, consegui furar a fila e dar uma folheada no livro. Não descobri ali nenhuma fórmula mágica, apenas alguns itens óbvios a serem analisados quando se quer, de fato, conhecer alguém. Se estou interessada em saber quem é Mauro Maurício, é normal que eu repare no modo como ele veste, fala e se comporta. Se ele dá uma gargalhada está alegre, se chora, está triste ou comovido. Se usa sempre terno preto, não acho que ele seja um indivíduo espalhafatoso, se engraxa os sapatos, é cuidadoso, e se sabe combinar bem as camisas com as gravatas e meias, adivinhe? Ele tem uma ótima esposa! Ao contrário do que o título do livro sugere, não há nenhum segredo para decifrar pessoas: trata-se da antiga arte de observar, aliada a um pouco de sensibilidade.

O que me chamou atenção mesmo, não foram as “dicas” da autora, mas a forma como o livro causou um interesse repentino nas pessoas. Parece que todos estão querendo urgentemente entender seu semelhante. Conviver tornou-se um jogo de individualismos, e desconhecemos cada vez menos as pessoas com quem lidamos. Os adolescentes passam um terço da vida se sentindo incompreendidos, e quando crescem é a vez deles não compreenderem. Os homens espalham aos quatro ventos que “ninguém entende as mulheres”, e as mulheres respondem que “quanto mais conhecem os homens, mais admiram os cachorros”. Depois homens e mulheres fazem uma trégua e têm filhos que, quando forem adolescentes, escreverão em seus diários: “ninguém me compreende!”. Tornamo-nos cada vez mais indecifráveis! O resultado disso é a deterioração dos relacionamentos, tão notória em nossos dias.

*Ai que vontade de comer feijão*

Ninguém pode negar que esse é um dos maiores problemas do século XXI: relações superficiais e pouco duradouras. Nos acostumamos a fast food, drive-in, instant mensseger, e também a relacionamentos práticos e rapidinhos (ainda vão inventar um nome em inglês pra isso). Nada muito envolvente (envolvimento dá trabalho), nada muito profundo (profundidade exige diálogo e tempo – que não temos), nada muito grande (para sempre é tempo demais a se investir numa pessoa).

Mas assim como acontece com as comidas congeladas, perdemos muito em sentir o sabor de algo realmente gostoso num relacionamento “enlatado”, tipo agite e use. Pode ser que um dia todos comam gelatinas verdes super-nutritivas e insípidas, como aquelas que os astronautas levam para o espaço. Nesse dia as pessoas poderão até ter aprendido a viver sozinhas e sem Deus. Mas eu, no alto dos meus noventa anos, vou continuar comprando feijão no mercado negro.

Talvez você também já tenha cansado de gelatina verde sem sabor. Quando me pergunto: “Por que estamos assim?”, nunca consigo ouvir como resposta um “porque queremos”. Essa distância entre nós mesmos, essa falta de entendimento entre pais, filhos, cônjuges, colegas de trabalho e torcedores de times rivais, essa incompreensão não parece ser uma opção que nos agrade. Ela é muito mais fruto de nossos medos e inseguranças. O resultado de nossas defesas, e a fantasia tola de achar que não se entregar dói menos que não ser feliz.

Nosso medo de não sermos aceitos é o que nos faz ceder a uma vida frustrante, e até se adaptar a ela como se isso fosse exatamente a coisa certa a fazer. Embora você sinta lá dentro, sobre o travesseiro onde você põe a cabeça todas as noites, uma vontade imensa de comer feijão.

Tornamos nossos relacionamentos mais confortáveis fazendo com que ele não mexam tanto conosco. Não nos incomodem a ponto de transformar o que somos. Homens, mulheres, temos medo. E um deles, é sermos descobertos e não aceitos. De sermos desmascarados e por isso, não mais amados. Relacionar-se plenamente custaria ter que se abrir e mostrar-se por inteiro, deixar-se observar, deixar-se decifrar, e isso nos faz tremer os joelhos. Nossa máscara é bem mais confortável. E um relacionamento superficial, se por um lado não nos satisfaz, por outro lado, não provoca sentimentos e reações que fujam ao nosso controle. Relacionamentos rapidinhos, descartáveis ou bocejantemente superficiais não borram a maquiagem. Nos contentamos em ser aceitos por aquilo que não somos... E suportamos o tédio, porque fugimos da perspectiva de dor. Embora não esqueçamos o gosto do feijão, até mesmo daquele que nunca provamos.

Esse apetite por ser inteiro não é em nada errado, é apenas a confissão da nossa humanidade: Deus nos fez para sermos felizes, plenos, não para sermos seres se escondendo.

*Baile de máscaras*

Esse é enfim o primeiro grande problema que nos fez distantes um do outro: o medo de sermos quem somos realmente. Há pessoas tão especializadas em ser o que os outros querem, que se lhe tirassem os paradigmas de beleza, poder e status, elas perderiam o motivo de viver: não saberiam quem são! Morreriam por acreditar que ninguém as amaria se elas não fossem exatamente como manda o modelo. Mas a tragédia de quem vive assim, é enxergar que nenhum de nós se encaixa perfeitamente em modelo nenhum. Sempre nos deparamos com falhas. E as escondemos. Todos nós.

Agora pense: Como as pessoas podem se entender, se elas não mostram ao outro quem são? Como podemos nos compreender se vivemos fugindo uns dos outros? Como decifrar pessoas num mundo onde as pessoas não se permitem decifrar? A resposta para o primeiro grande problema é lançar fora o medo. Se é tão difícil sermos amados pelo que somos de verdade, uma coisa é certa: essa é a única maneira de ser amado. Se você precisa usar uma máscara para ser aceito, a verdade é que sua máscara é amada e não você. E máscaras, amigo, existem às milhares. Você é único. E atrás dessa maquiagem, talvez esteja desperdiçando uma chance única de ser amado de verdade.

O segundo grande problema da nossa distância universal é que, acostumados que ficamos a esse baile de máscaras, já perdemos há muito o hábito de observar as pessoas. Ora, mas se todas parecem tão iguais! Como num desfile de moda. As pequenas variações de cor da pele e cabelo nas modelos que desfilam, não consegue tirar a impressão de uniformidade que elas formam, como se fossem todas o mesmo ser fabricado em série. Infelizmente essa busca pelo padrão universal não fica só nas passarelas. Já não nos preocupamos em sermos apenas, mas em sermos “daquele jeito”. Se dermos uma olhada ao redor veremos que Deus ama a diversidade, e pôs no mundo criaturas tão diferentes por um só motivo: a beleza também está na diferença, no contraste, na assimetria. Mas agora todo mundo se esforça para ser igual, usando o mesmo padrão global de ser humano perfeito... (ops! Plim, plim).

*Labirintos fascinantes*

Assim fica mais difícil conhecer as pessoas. Elas ficam parecendo uma grande massa de iguais. Mas eu acredito que ainda é possível ver algo especial se nos esforçarmos para ver além. Só temos que recuperar o gosto por observar. Reparar detalhes. Ou no caso dos homens, pelo menos tentar. O melhor modo de decifrar as pessoas ainda é contemplando-as. É incrível como, olhando para nosso semelhante, aprendemos muito sobre nós mesmos. Crescemos sobremaneira saindo do nosso próprio mundinho para ver a beleza particular de cada pessoa. E também seus defeitos, manias, necessidades. Veremos algumas coisas tristes, outras que nos causarão repulsa. Mas sempre haveremos de crescer. Veremos que a verdade não pertence somente ao nosso conjunto de frases feitas. Há um pouco mais de verdade no olhar de cada pessoa que nos cerca. Mas a gente tem que chegar lá, bem perto, para ver.

A resposta para o segundo grande problema é termos coragem para nos aproximar. Observar detidamente, com o mínimo de preconceito possível, e tentar apreender a profundidade, mesmo a não nítida, ou a de difícil acesso. Decifrar pessoas pode ser como entrar num labirinto, em que, à medida que você vai se aproximando do centro, as paredes vão ficando mais estreitas e salientes, com pontas agudas em que você poderá se machucar. Mas se conseguir chegar ao centro, terá uma visão tão bela que te impressionará a ponto de fazer você não querer mais sair dali. O centro do labirinto pode guardar o lugar onde você nasceu para ficar.

Quero crer que haveremos sempre de encontrar algo para observar além da máscara alheia. Algo que nos diz respeito, que vai mexer com nossas vidas (oh, não... não tem outra maneira mesmo!), e vai exigir de nós mesmos, atitudes de ser humano para ser humano, não mais de ser humano para objeto. Reaprendendo a observar pessoas, conseguiremos ser mais humanos, nem que isso parta do encontro de vazio com vazio.

*Descansando o olhar*

Para decifrar pessoas não basta querer saber os segredos de invadir. Tem que se ter consciência que, conhecer é também ser invadido, e que por isso exige muito mais do que a maioria de nós se sente capaz de dar. Mas o fato de eu estar dizendo tudo isso, é porque acredito que ainda somos capazes. Deus nos fez assim! Não nascemos para nada abaixo da plenitude. Se acostumar ao superficial é o que de pior podemos fazer a nós mesmos. Relacionamentos sólidos e profundos demandam grande energia e investimento, mas valem a pena. Fazem-nos conhecer não só as pessoas, mas a sensação ímpar de sermos satisfeitos em todos os níveis do ser, a alegria sublime de amar e sermos completamente amados. Lembra? Sabe o que é isso?

Neste início de semana, pense se já não é hora de rever seu modo de olhar e ser olhado. Peça a Deus o dom de observar, e a coragem de ser exatamente quem é. Pode ser que seus olhos às vezes fiquem cansados, ao ver tantas paisagens tristes, tantos lugares áridos onde a pupila não possa descansar. E ainda pode ser que, sendo quem você é, você perca algumas coisas, até algumas pessoas que não queiram o que há por detrás da sua máscara (não que você não seja especial, é que nem todo mundo aprecia Miró ou Van Gogh). Mas esteja certo que Cristo sempre te olhará com amor leal. E nEle você sempre achará lugar para contemplar e sorrir.

Uma semana iluminada,

Luciana

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