sábado, 9 de junho de 2001

Não lhe quebrei as mãos

Considere as estatísticas: é tão raro um brasileiro comprar um livro novo, sem ser movido necessariamente por obrigação ou vínculo com alguma instituição educacional, que naquele dia eu me sentia verdadeiramente uma privilegiada. Com computador num país de desnutridos, com acesso a internet num país cuja maior prestadora é a Embratel (mas presta mesmo, hein?), com dentes no país do "INAMPS", viva num país de alta taxa de mortalidade infantil e com a ousadia de um livro novinho debaixo do braço, no país do carnaval-e-futebol! Comovente.

Me refiro ao dia em que comprei "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". O tema era tentador demais para esperar chegar ao sebo. Juntando minhas minguadas economias eu cometi esta pequena loucura orçamentária e resolvi ler o livro sem pressa, saboreando cada centavo que valeu suas páginas. Somente ontem, depois de uns 6 meses foi que o terminei. É verdade que ali há conteúdo humano (em excepcional forma literária) suficiente para tecer diversas reflexões, mas um conto em especial me chamou atenção.
Não vou cometer a insanidade de resumir uma obra de Érico Veríssimo, mas apenas para economizar espaço e a sua paciência, me permito traçar um esboço da estória. Esta fala de pais presenciando o concerto que consagra seu filho como um pianista célebre. Pai e mãe num camarote, estranhos àquele elitista mundo artístico, mas completamente absortos na contemplação da glória de seu virtuose rebento. Antes, tão seu menino, seu filho, agora revelado para um mundo desconhecido, rico, culto, superior, onde se tem o privilégio de ser mais. E sabe, nem os pais escapam a um olhar cobiçoso sobre a glória (tudo bem, eles merecem)... . Ali, ocultos na sombra do teatro, eles reclamavam para si parte dela, isto é, ao menos buscavam justificativas para sorver uma terça parte que fosse daqueles aplausos.

A mãe orgulhava-se do seu quinhão: sempre fora dedicada, trabalhando noite e dia para permitir ao seu filho chegar até onde ele estava. Ouve cada nota saboreando a sensação de mãe e mecenas, superior ao superiores que agora estavam completamente dominados pelas mãos de seu filho. O pai, porém, não compartilhava deste orgulho. A vida toda estivera alheio à função paterna, vencido pelo vício da bebida, humilhado pela incapacidade de deixá-lo e reconstruir sua moral. Cada nota que ouvia lhe lembrava o filho que ele nunca amparou. Chorou, por fim, vencido pelo fracasso.

Mas uma lembrança iluminou-lhe o semblante: uma noite mal dormida, em companhia da mulher e do filho, dividindo com eles uma cama pobre e estreita. Nesta noite ele sentiu que as mãos do bebê lhe roçavam as costas, e com medo de deitar sobre elas, ficou acordado até a manhã, desconfortável, apreensivo. "Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho, hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... não podia ser o artista que é". E sorri satisfeito com sua partícula de glória.

Fiquei pensando com que facilidade nós nos acomodamos à idéia de que nos tornamos bons por condutas negativas. Quando uma voz ousa perguntar o que fizemos por nosso semelhante, automatizamos um: "Não matei, não roubei, não feri, nem interferi - eu não lhe quebrei as mãos", e o deixar de fazer nos satisfaz a consciência. Mas a omissão pode ser uma forma cruel de pecar, tanto que Jesus, ao falar sobre o juízo, a condenou veementemente em Mateus 25:41 – 45: " Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos; porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes. Então também estes perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou forasteiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Ao que lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixaste de fazer a um destes mais pequeninos, deixastes de o fazer a mim."

Podemos confiar nosso cristianismo ao simples "deixar de fazer"? Se deixamos de fazer o bem, estamos pecando por omissão. Se deixamos de fazer o mal, estaremos sendo melhores que as ostras, esquilos e nematelmintos? Como seremos mais racionais que eles, se não percebermos que a vitória do livre arbítrio não é deixar de cometer a injustiça, mas decidir fazer o bem?

Oro para que nesta nova semana consigamos fazer mais por nosso próximo que não lhe quebrar as mãos. Que as mãos que não se intrometem, aprendam a se comprometer. Que as mãos que não apedrejam, aprendam a afagar.

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