sábado, 16 de junho de 2001

Magistrais

Um amontoado de estudantes que haviam acabado de sair das salas de aula, disputavam um lugar sob a sombra do ponto de ônibus. Eu me comprimia num canto, com aquela placidez conformada de quem espera o prenúncio de um pará-choque na linha do horizonte. Foi quando reparei na voz tímida e aguda ao meu lado. Olhei, e me causou
admiração como a atitude dela se esforçava para dar força àquela voz miúda: - Serei juíza!

Seu Manual de Direito impecável, um fichário grosso e o estojo transparente deixando ver suas canetas organizadas, acabavam de compor o estereótipo perfeito de uma aluna de Direito deleitando seu primeiro semestre na faculdade. Apesar do calor e do ônibus não chegar, eu sorri enternecida, pensand nessa vocação para a magistratura que todo o ser humano tem, e que o acadêmicos de Direito aspiram com delícia.

Por causa do pecado, o ser humano entende as leis como meio de satisfazer sua ânsia de poder. Por isso todo mundo que tem suasnormas, por mais simples que sejam – normas de conduta, religiosas, morais – sente coceiras de citá-las, para sentir o gozo de sujeitar o vizinho a elas. Das leis que nos são dadas, abstraímos uma autoridade de cobrá-las a todos os demais, como se isso nos aproximasse da
glória de quem as criou. Se submeter a todas as regras (e quanto mais duras, melhor) vale a pena ao paladar pecador, quando este se depara com alguém que ousa não fazer o mesmo: é então que degusta-se o perseguido momento de se tornar juiz do semelhante.

O que a Bíblia fala sobre essa nossa tendência inata para julgar? Oapóstolo Paulo, em suas cartas, nos dá duas visões do tema. A primeira, está em I Cor. 4:5: "Portanto nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só trará à luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o seu louvor". Jesus já advertira sobre isso, como lemos em Lucas 6:37; "Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados." Qual o motivo desse conselho? Ora, no nosso ordenamento jurídico, um dos motivos que impede o juiz de julgar determinada causa, é fazer parte dela. Espiritualmente falando, todos partilhamos da mesma culpa, o pecado em suas mais execráveis formas, e só Deus, o Supremo Juiz, tem competência para nos julgar a todos. Só Ele tem acesso aos desígnios do coração, e conhece as coisas ocultas que nossa débil visão não é capaz de enxergar. Quando ignoramos esse impedimento e, do alto de nossa injustiça presunçosa, persistimos em sentir o sabor do domínio, transformamos o ato de julgar numa forma insidiosa de acusar.

Esse tema me lembrou o filósofo e escritor Kafka, que em seu livro "O Processo", conta a narrativa da vida de um homem o qual, ao acordar certo dia, descobre que está sendo processado, embora não tenha conhecimento do crime que cometeu. A estória, com os típicos absurdos de Kafka, toma ares de loucura à medida em que se desenrola (ou enrola ainda mais!): uma justiça paralela, decadente, infundada, comandada pela vontade de homens inacessíveis, onde não há o menor senso de equidade, nem o réu pode se defender, apenas aguardar o favor dos juizes se estes simpatizarem com o infeliz. No fim, o personagem é condenado à morte sem ter tido chance de provar sua inocência, sequer saber qual fora seu grande crime. É nesse ponto que nos damos conta que nós mesmos representamos essa justiça mesquinha e obscura, alojada nas trevas pecaminosas do nosso ser, e Joseph K. representa as pessoas que, por nossos métodos mais covardes, condenamos ao degredo, à margem dos nossos conceitos (forjados) de conduta correta ou cristã. Esse tipo de julgamento condena, antes de tudo, a quem o faz. A sentença, sem que se aperceba disso, recai sobre quem a profere. Comprovaremos isso num breve e verdadeiro Juízo...

Mas Paulo ainda nos fala algo sobre julgamentos: "Ou não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? ... Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos?" I cor 6:2,3. Paulo se refere à profecia de que trata Apocalipse 20:4, quando após a Vinda de Cristo, os filhos de Deus considerados justos, e tendo sua natureza corruptível já
transformada à semelhança da perfeição com que foram criados, receberão poder para julgar todos os atos dos ímpios, inclusive Satanás e seus anjos. Não é interessante reparar que, para que venhamos a ser dignos de julgar, precisamos enquanto pecadores, nos abster disso? Enquanto carregamos a mácula do pecado, não estamos habilitados para discernir conforme a Justiça Divina. Somente Ele, depois de nos tornar inteiramente santos e livres da nossa natureza contaminada, é quem nos dará poder para exercer a função de juizes das almas.

E quando uma posição administrativa na igreja parece sugerir o encargo de julgar as pessoas? Quando eu precisar, de fato, formar um juízo de valor sobre a atitude ou vida de alguém visando solucionar problemas ou tomar decisões quanto a vida desse alguém? Creio que ainda assim prevalece a assertiva: não julgueis. Enquanto aguardamos o tempo em que Deus nos capacitará para perscrutar corações, temos uma missão a cumprir, que tem sido bastante negligenciada: amar as pessoas, ouvi-las, orar com elas, chorar com suas angústias, ajudá- las a ver o Cristo Vivo que habita em nós. Ele mesmo nos deu o exemplo de como agir quando falou: "E, se alguém ouvir as minhas palavras, e não as guardar, eu não o julgo; pois eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo"(Lucas 12: 47). Se o próprio Deus feito Homem levava a Verdade e exercia seu ministério sem se preocupar em julgar os que a ouviam, que diremos de nós, míseros pecadores? Não é impondo a minha verdade e capacidade de cumprir normas aos outros, que estarei executando a missão que Ele designou. Nosso dever é amar e deixar que o Espírito Santo faça a parte que lhe cabe. Hoje há urgência de se imitar Jesus: devemos nos preocupar em salvar ao invés de julgar, esse deve ser o parâmetro de qualquer decisão que envolva outra vida que não a minha. Líderes e membros de igreja, devem rogar a Deus sabedoria para julgar questões
administrativas, e inteligência para, ao considerarem a situação de um pecador como eles, buscarem modos de salvá-lo, ao invés de estratagemas para julgá-lo.

Julgar é colocar um jugo sobre as almas. Especialidade dos fariseus hipócritas, "Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; mas eles mesmos nem com o dedo querem movê-los" (Mateus 23:4). Salvar, é oferecer o fardo leve da paz – que só pode ser dada por quem conhece bem Sua Fonte (Mateus 11:30).

Uma semana iluminada!

Luna

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