domingo, 11 de junho de 2000

Olhos de pomba : uma meditação romântica e democrática

“Como és formosa, querida minha, como és formosa! Os teus olhos são como os das pombas...” Cantares 4:1

Por toda parte, corações, cupidos, rosas, propagandas em graúdas letras vermelhas falando de amor e de quanto custa mantê-lo... um clima cor-de-rosa paira por sobre a nuvem cinza que envolve São Paulo, não menos rosa em todas as demais cidades brasileiras menos cinza. É dia dos namorados e esta é uma daquelas ocasiões em que, quem está de fora, se sente mais por fora que nunca. Cada singelo coraçãozinho vermelho pode ser uma afronta aos sinceros sentimentos dos solteiros, descomprometidos e afins... ontem mesmo, já um tanto melancólica de tanto ouvir falar em “jantar dos namorados” patrocinados pelas igrejas, sugeri a uma amiga que se devia fazer paralelamente , a “festa do casaquinho”, para que essas desconsoladas almas abandonadas, ou não tão abençoadas, tivessem alguns momentos descontraídos, partilhando a tragédia grega da solidão com outros pouco agraciados que não têm nada mais que um casaco para se aquecer...:-)))
Mas como esta idéia ainda não é realidade, entremos também no clima da diáfana nuvem cor-de-rosa. Para tanto, nada melhor que começar pelo Cântico dos cânticos, que ainda é o mais belo hino de exaltação ao amor, embora perca cada vez mais atenção para a sua concorrente, a filosofia do Quântico dos quânticos, aquela que quantifica e racionaliza o amor entre os seres humanos, criando relacionamentos matematicamente quase perfeitos, não fosse o simples detalhe que, no amor um mais um nunca pode ser dois.
O versículo acima mencionado me chamou atenção por um detalhe biológico da analogia de Salomão. Ele comparou os olhos da sua amada aos olhos da pomba, e considerando que há na natureza outros olhos mais belos a que ele pudesse fazer referência, achei que poderia haver um significado mais profundo para a escolha justamente da pomba. Descobri depois de uma pequena pesquisa oftalmológica, que os olhos das pombas são unifocais, ou seja, têm a característica peculiar de olhar apenas um objeto de cada vez. Assim, ao contrário de nós que conseguimos focalizar várias pessoas enquanto passeamos abraçados carinhosamente a nossas bolsas pela praça da Sé, aquelas pombinhas que por lá trafegam só conseguem ver uma pessoa de cada vez.
Creio que neste sentido surge uma análise interessante sobre a amada de Salomão: tal como as pombas, ela teria olhos só para ele, e por ter escolhido repousar o olhar sobre seu amado, nenhum outro objeto ou pessoa teriam lugar no seu ângulo de visão. A romântica e sábia Sulamita tinha olhos de pomba porque era completamente fiel àquele nobre rapaz que apascentava entre os lírios, e tal qual o Deus a quem serviam, sua fidelidade era aquela que dura para sempre.
Quando o verdadeiro amor toca a existência humana, ele invade todos os espaços (mesmo que lentamente) e provoca uma resposta não menos total: amor dado em sua totalidade e recebido abertamente em sua totalidade não responderá parcial, limitada ou condicionalmente, mas reagirá por completo, quer em profundidade, quer no tempo. Há um filósofo chamado Raguin que escreveu: “somente o que é perpétuo pode manifestar uma profundidade íntima”, e ainda que hajam disparidades, problemas, ruídos de comunicação, e até mesmo distância e imperfeições adquiridas pela vida afora, o ser humano que ama se empenha para sempre. Se não investe num relacionamento para a eternidade, ele apenas se empresta e não permitirá que seu amor passe da adolescência. Chegar ao amor maduro não é apenas ter capacidade de se apaixonar, mas de permanecer no amor uma vez focalizado, deixá-lo crescer sem acrescentar frustrações, e isso implica numa consciência quanto às exigências desse amor; a capacidade de manifestá-lo, identificando as motivações para fazê-lo; responder equivalentemente a intensidade do afeto; apreender cada nova nuance na experiência de estar sendo amado até fazer desse amor o parâmetros de nossas atitudes e pensamentos, sem que para isso tenhamos deixado de ser nós mesmos, antes, tenhamos nos encontrado ainda mais, nos descoberto de forma mais completa. Neste estágio alcançaremos a fidelidade eterna. Chegou-se ao ponto em que o amor basta em si mesmo, o intelecto e a vontade se converteram ao amor; o primeiro reconhecendo o valor dele, a segunda, por seu caráter unifocal, dizendo não a todos os demais amores (principalmente aos próprios).
Tal como o livro do Cânticos dos cânticos, esta análise deve ser aplicada ao nosso relacionamento com Deus. Um coração convertido a Deus, será um coração apaixonado, que responde por inteiro ao amor supremo, terá uma vontade firme como torre (tal qual os seios da Sulamita, tipo da Igreja de Cristo) e uma mente criativa, inteiramente harmonizada com o Pai e crescendo em todos os níveis do seu ser, em direção a Ele. Interessante perceber que o amor em Deus só se perfaz quando entregamos a Ele fielmente, justamente aquilo que mais gostaríamos de ter somente para nós: o coração, a mente e a vontade.
Claro que este processo não se faz sem dificuldade... é um caminho longo, pedregoso e por vezes não espontâneo, sujeito a quedas , incertezas, saudades dos antigos amores, mas em tudo isso , se houver sinceridade conosco mesmos, haverá vitória, pois identificaremos os ídolos que nos separam ainda de Deus e com a ajuda do Espírito Santo, destruiremos passo a passo, um a um os seus altares, sempre fiéis ao amor que uma vez conhecemos. Deus por sua vez não é o deus do Quântico dos quânticos, e não precisa de fé em quantidade, mas em qualidade; Ele fez nosso coração, sabe do que é feito, e mede nosso amor e fidelidade com sua própria medida, que está longe de qualquer parâmetro humano e tem por fundamento Seu próprio amor e nossa entrega (leia-se, capacidade de recebê-lO).
Prosseguir em direção a esse amor, ser fiel a ele, investir nele sabendo que a qualquer tempo estaremos sendo correspondidos: isso é encontrar Cristo. E apaixonar-se por ele, como bem o descobriram os que já se apaixonaram de verdade, é às vezes chama ardente, desejo flamejante, às vezes brasa que se mantém acesa não obstante a chuva do pesar, ou ainda a nostalgia profunda de descobrir um amor intenso sem poder possui-lo totalmente de pronto...
Namorados ou descomprometidos: que neste dia cor-de-rosa - e em outros azuis ou acinzentados - o Senhor de todo amor possa nos olhar apaixonadamente e comparar nossos olhos aos da pomba.
Uma semana feliz, iluminada e cheia de amor pra dar!

Lux Lunae

Um comentário:

Unknown disse...

Linda e profunda reflexão .um abraço paz e Graça !