domingo, 18 de junho de 2000

Lembrando com pedras brancas

“Guarda-te para que não te esqueças do Senhor teu Deus... antes te lembrarás do Senhor teu Deu , que é Ele que te dá força para adquirires poder; para confirmar o Seu concerto, que jurou a teus pais ; como se vê neste dia” Deuteronômio 8: 11 e 18

Semana passada tive o prazer de degustar um gostoso e nutritivo almoço na casa da nossa amiga geana Pilocarpina, e logo após a refeição me deparei surpresa com algumas fotografias que a mãe dela tirou há uns quatro anos quando esteve a passeio em Natal. Cada paisagem que eu via me remetia às mais profundas lembranças, cada lugar que eu identificava era uma voz doce me contando a minha própria história. Uma das fotografias mostrava a praia de Areia Preta (cuja areia não é preta; certamente quem deu este nome ainda não havia visitado Santos) e num cantinho, o velho ponto de ônibus junto à casa em ruínas. Meu coração apertou mais forte diante deste quadro e todas as lembranças que ele me trouxe. Este ponto de ônibus era o último, portanto o mais afastado e o mais próximo à parte mais isolada e bonita da praia. À direita ficavam as ruínas de uma velha casa, e seu alicerce nos olhava com ares de imponência, como uma altiva senhora idosa cujo olhar soberbo é o último sinal de grandeza, negado pelo decrépito corpo. O alicerce terminava bem em frente a rochas escuras e pontiagudas onde as ondas vinham quebrar furiosamente. Ali, no cantinho do alicerce, olhando o mar bravio, duas mentes não menos bravias se encontravam às tardes num namoro filosófico. Hehehe, foi o termo mais próximo que eu encontrei para adjetivar meus encontros com Roberto. Eu tinha treze anos, ele, vinte e oito, mas estávamos unidos por uma criticidade aguda e por uma mania incurável de buscar o porquê a solução das coisas. É certo que chegávamos a bem poucas conclusões, mas divagávamos sobre todas as facetas da natureza humana, da sociedade, do sistema vigente. Eu estava acabando de descobrir o mundo ao meu redor , e tinha uma fome indevassável de estudar e entender. Assim, tudo era matéria-prima para nossas mentes artesãs; o homem era dissecado em nossas análises tão amadoras mas que julgávamos a verdadeira pedra filosofal. Lembrei do dia em que terminamos o namoro ( o mesmo dia em que decidi me batizar da IASD) e ele me deu uma pedrinha branca, cuja função, segundo ele, era ser o nosso memorial. E aí filosofamos pela última vez a respeito da memória. Ele me falou que ao olhar aquela pedra eu não deveria usar apenas minha memória passiva e lembrar de fatos isolados, como que abrindo um arquivo no computador, mas usar minha memória afetiva e asociar cada fato desse a um sentimento significativo, reviver cada lembrança não como parte do passado, mas com a certeza de um sentimento presente e por ser eterno (segudno ele), projetando-o e celebrando-o para o futuro. Depois desse dia aprendi a guardar pequenos memoriais de cada fato importante da minha vida, assim, consigo reviver o sentimento marcante com exatidão, apenas fechando os olhos e tocando uma flor seca, um guardanapo, um chaveiro, uma pedra, um limão, uma escova de dentes...
Ao nos criar, Deus sabia que certas experiências deixam marcas incisivas em nossa psique, marcas que são reativadas com o sentimento correspondente quando nos colocamos diante de algo que simbolize ou faça analogia a elas. Por isso providenciou para Seu povo uma série de memoriais que servissem de aliança entre Ele e os Seus. O pecado corrompeu também nossa memória, de modo que somente uma memória convertida é capaz de fazer lembrança das bênçãos de Deus como parte do presente e do futuro, celebrando-as como marcas indissolúveis de um amor infinito. Sabendo o quanto somos propensos a esquecer Suas dádivas e o significado delas em nossa vida, Deus utiliza com frequência o termo: “Lembra-te...”.
O povo hebreu é o maior exemplo disso. O hebreu cria e firmava sua fé não pela força d complexos argumentos racionais ou provas teológicas doutrinárias; sua convicção vinha da experiência com deus, a vivência das bênçãos divinas celebrada sempre e passada de geração à geração. “Lembra-te de todo caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto”. Dt 8:2. E o hebreu não apenas recordava, mas “fazia memória” de sua experiência, tornando os fatos objeto de culto e louvor, tornando-os parte do presente e certeza para o futuro, renovando o eventos no tempo , no significado e na eficácia. E o hebreu acreditava, porque seus olhos viram (Dt. 11:3 - 7), porque seus pais lhe contaram (Dt. 32:7), porque sua experiência com Deus era mais que lembrança passiva; era fonte de nova e constante bênção ( Dt 8). E a fé do hebreu crescia de forma extraordinária; uma fé simples mas eficaz cujo segredo de ser inabalável estava em ser uma fé pessoal , não teórica, mas “solidamente ancorada na vida, capaz de dar a Deus um nome e traços a ao Seu semblante”.
Nossa fé perde a força quando deixamos de fazer memória da nossa história com Deus, quando não damos o significado verdadeiro às grandes e pequenas alianças que Ele fez conosco. Percebi isso certo dia quando uma amiga minha me procurou angustiada, dizendo-se não estar mais apaixonada pelo seu marido, e por causa disso estava vendo a aliança do casamento se quebrar. Isto é um exemplo comum de memória enferma, que não lembra ou lembra apenas parcialmente dos fatos que conduziram à aliança, não interpreta o que recorda, não ama nem contempla as lembranças das provas de que o amor existe e está bem mais próximo que se imagina. Falei isso a ela e pedi que ela lembrasse de todas as qualidades do marido que a fizeram se apaixonar por ele, que as listasse num papel e que as lesse todos os dias , se esforçando por achar novas qualidades cada vez que as lesse. Que orasse agradecendo a Deus pelas qualidades do seu marido e todas as boas lembranças que ele lhe proporcionou, louvando ao Pai pelo homem que ela escolheu para ser seu companheiro. Faz algum tempo que perdi o contato com ela, mas da última vez que tive notícias dela eu mesma louvei a Deus por um caso a menos de adultério da Igreja.
Crescer na fé significa cada dia fazer memória da benevolência divina. Deus sabe tanto dessa nossa necessidade espiritual que nos deu um dia inteiro como memorial da criação e redenção, para ser dedicado exclusivamente à contemplação de Sua divindade. A escritora Ellen White, baseada em sua própria experiência espiritual, aconselha em um de seus escritos a reservarmos pelo menos uma hora diária para o exercício da contemplação do amor de Deus revelado por Sua Palavra. E também afirma com a convicção de uma fé pessoal , que “nada temos a temer quanto ao futuro a menos que nos esqueçamos o modo como Deus nos guiou no passado”. Isso é converter nossa memória a Deus. E quanto mais o tempo passar , mais seremos capazes de lembrar tudo , guardar na mente e coração tudo o que os nosso olhos viram e os ouvidos ouviram. A memória afetiva que carregamos conosco nos fará capazes de enfrentar qualquer circunstância da vida confiando que nosso Deus é Pai e Senhor, e ainda que o mundo nos rejeite, Ele será conosco.
Um dia, ao lado de Cristo no céu, nossas lembranças já não serão objeto de celebração, mas apenas peças de um quebra-cabeças que se revelará perfeitamente, e nós mesmo alcançaremos a memória restaurada com a qual uma vez fomos criados. Entenderemos então a dimensão da memória de um Deus que nos tem gravados nas palmas das mãos.
Hoje já não tenho a pedrinha branca que Roberto me deu, ainda que guarde a lembrança dele com carinho. Mas guardo comigo a fé em um Deus que nos prometeu por memorial de nossa vitória: “Ao que vencer... dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito” (Apoc. 2:17), para levarmos conosco para sempre esta aliança de Seu amor eterno.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

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