quinta-feira, 15 de novembro de 2001

Os Rubens

Vinícius ainda não tinha pronunciado a sentença, mas Lia aprendeu rápido que "beleza é fundamental". Seu maior temor era não conseguir casar e perpetuar a descendência de seu pai Labão, mas como não bastasse ser rejeitadada pela falta de dotes físicos, sua irmã Raquel era muito bela e tinha de fato o amor de Jacó. A história está em Gênesis 29 e nos conta que, com uma ajudinha do pai, Lia conseguiu casar com Jacó, e por piedade divina, já que era desprezada do marido, teve a felicidade de ser fecunda e dar-lhe um filho, a quem chamou de Rúben, "pois disse: O Senhor atendeu à minha aflição".

Talvez por ter nascido como uma resposta à aflição, Rúben também era sensível à aflição alheia, e seu coração gostava de se ocupar do bem. No entanto era um ser humano falho, imperfeito, chegou a cometer tamanho erro que mesmo sendo o primogênito, não recebeu a bênção que lhe estava proposta em sua plenitude. Rúben não fez nenhum grande feito que o tenha colocado entre os heróis bíblicos, mas sua atitude em um dos episódios da sua vida, me convenceu de que ele era uma pessoa boa e que conhecia o amor.

Foi quando viu o seu irmão mais novo, José, em aflição, que Rúben revelou a bondade que havia em seu caráter. Os irmãos nutriam grande inveja de José, e estavam dispostos a matá-lo para não continuarem vendo aquele menino recebendo privilégios do pai, a que eles não tinham direito. E zombavam dizendo: "Vem lá o tal sonhador!" se referindo aos sonhos em que José profetizava sua futura superioridade sobre os irmãos. Ora, Rúbem sabia que não era profeta. Mas como todo homem, também era um sonhador, ao menos no sentido poético da palavra. Não era por causa disso que deixaria matarem seu irmão. Por isso convenceu a deixarem o pequeno José numa cisterna seca, esperando que, depois que os irmãos fossem embora, ele voltaria ali, tiraria José da cisterna e o devolveria a Jacó. Nesse ponto, eu quero me deter num comentário que a escritora Ellen White faz: "Teriam executado seu intento, se não fora Rúben. Ele se negou a participar do assassínio de seu irmão, e propôs que José fosse lançado vivo em uma cova, e ali deixado a perecer, sendo, entretanto, seu intuito secreto, livrá-lo, e devolvê-lo ao pai. Tendo persuadido todos a consentirem neste plano, Rúben deixou o grupo, receando que não pudesse dominar seus sentimentos, e fossem descobertas suas verdadeiras intenções." (Patriarcas e Profetas Pág 211). Quando Rúben voltou José tinha sido vendido pelo seus irmãos a comerciantes ismaelitas, o que o deixou desesperado. Não vendo o José sonhador no meio deles, rasgou as vestes e gritou: "e eu, para onde irei?"

Semana passada, eu o encontro. O Rubens. Tá no plural porque certamente tem o dobro de sensibilidade humana do Rúben. Nos conhecemos incidentalmente numa troca de e-mails e nos reconhecemos amigos de primeira, entendendo um ao outro e partilhando afinidades. 23 anos, gosta de Machado de Assis e Saramago, colabora numa ONG que cuida de aidéticos, e na primeira mensagem se definiu como "baixista de uma banda de rock e ex-adventista". Uma das poucas pessoas com quem já tive prazer de falar sobre teologia, e aprender muito de maneira fácil. A semelhança com o personagem bíblico não está somente no nome, nem no fato dele ser um ser humano imperfeito, mas dado a fazer o bem. O Rubens também "deixou o grupo" porque sentiu que seus sentimentos eram diferentes dos demais. Ele foi atraído por um Homem que falava de amor, bondade e misericórdia, mas cuja doutrina incomodava aqueles que tinham se acomodado em apenas viver suas vidinhas, sem grandes mudanças ou comprometimentos com o próximo, ocupados em satisfazer seus instintos e conquistarem seu quinhão de poder. O Rubens que se apaixonou por Aquele Homem, também se desiludiu ao ver que seus próprios irmãos, criados pelo mesmo Pai, estavam a ponto de eliminar Este Homem do seu meio. Os irmãos de José ao menos tinham uma aversão descarada, estes aqui diziam adorar o Irmão a quem traíam. Toda vez que negavam o amor, esqueciam a misericórdia e preferiam seus próprios interesses à bondade, esses irmãos de Jesus O feriam um pouco e um pouco mais. Este Rubens aqui não conseguiu dissuadí-los de matarem, por seus erros e hipocrisias, a um Ser cujo maior sonho era salvar a todos eles. Mas se afastou do grupo, por não conseguir dominar seus sentimentos de frustração com o cristianismo que um dia idealizou. E eu fiquei cá pensando comigo mesma: e se um dia o Rubens resolver voltar? Será que ele encontrará os irmãos de Jesus - nós, que também nos dizemos seguidores - praticando o amor? Ou não vendo o Cristo Sonhador em nosso meio simplesmente dirá "e eu, para onde irei?"

Essa dúvida me ocorreu enquanto eu lia o parágrafo abaixo, que eu transcrevo de um dos e-mails que trocamos, em que ele expõe com sinceridade sua visão sobre o cristianismo. Entrego-o para a meditação nu e cru, sem cortes, mas com alguns curativos.

"A maioria das pessoas que vão à Igreja não compreendem a essência da doutrina cristã. Em primeiro, acham que a palavra primordial é "não" . Não bebe, não fuma, não ouve música, não dança, não vai a determinados ambientes, não lê determinada literatura, não assiste determinados programas, não come determinadas comidas, não, não, não, não... E a essência do evangelho é a palavra amor. Percebe? Quando Jesus pregava, as pessoas se maravilhavam com a doutrina dele exatamente por isso. Ele pregava o amor, enquanto os religiosos da época pregavam a negação, o medo, o autoflagelo. E hoje ainda é igual. Sabe, existem dois instintos primitivos no homem, que existem em todos os outros animais : medo e ambição. Utilizando medo e ambição, você adestra um cachorro. Você ensina um exercício, se ele faz certo, ganha uma recompensa, se faz errado, ganha um castigo. E funciona! Com o homem é igual, e me cansa, e às vezes até me desilude ver tanta gente manipulada por esses dois instintos. Nunca acredite em alguém que apresenta a religião apenas como uma forma de ambição. "Aceite a Jesus e sua vida vai ser maravilhosa, próspera e cheia de felicidade e de quebra você vai pro céu" nem em quem diga "Se você não aceitar sua vida vai ser trágica, infeliz e de quebra você vai pro inferno." Ambição e medo, percebe? Instintos básicos. Mas a essência do evangelho é o amor, e isso não é nenhum instinto. É Divino. E é a única coisa capaz de nos tornar realmente livres, justos e felizes, porque somente amando é que imitamos Deus."

Só resta a mim olhar dentro dos seus olhos que nunca vi e pronunciar sobre a fé e a forma de amar dos que ele representa, a mesma bênção de Moisés: "Viva Rubens, e não morra; e não sejam poucos os seus homens". Deut. 33:6

Uma semana iluminada.
Luna

Um comentário:

Luciana Teixeira disse...

Ah, que bonitinho, dá pra ver que eu já tava xonada, né? kkkkkkk
Mas tirando a rasgação de seda, continuo concordando com ele. NA época recebi uns e-mails quebrando o pau nos argumentos do "ex-adventista convicto", mas eles só fizeram confirmar os argumentos expostos.