terça-feira, 11 de novembro de 2003

Tratamento natural

Meu frágil limiar para a dor me fez ser, durante muito tempo, uma entusiasta assumida da praticidade alopática. Qualquer dor, febre, cólica ou machucado, eu corria para um remédio rápido, local, eficiente e se possível sem gosto ruim nem ardência. “Ora”, eu raciocinava, “se Deus nos permitiu ter a ciência de ir direto ao ponto com uma aspirina, nada como agradecer-Lhe fazendo uso da dádiva.” E que parto humanizado que nada! Desde que, aos doze anos, eu compreendi exatamente como os bebês vinham ao mundo, decidi: “quero um parto com drogas, muitas drogas, dopping absoluto”.

Mas tive a chance de convier algum tempo com um casal muito amável que me fez ver o processo doença/cura por outra ótica. Enquanto as estadas na casa deles se resumiam a degustar deliciosas refeições vegetarianas, estava tudo às mil maravilhas. Até um dia em que, logo após o almoço, me atacou uma das minhas insuportáveis enxaquecas. “Como assim não tem aspirina?”, eu perguntei incrédula à senhora sorridente. E ela me explicou mais uma vez que não tinha, que eles não faziam uso de nenhum tipo de tratamento alopático, não gastavam um só centavo na farmácia. Na minha bolsa, dezenas de cartelas vazias de anador aumentavam meu desespero. Ela, percebendo-o, recomendou que eu tomasse um banho frio, depois fizesse um escalda-pés, e por fim me faria uma massagem nas têmporas. Fiquei ainda uns minutos olhando boquiaberta para aquela gente que, em pleno século XXI, não possuía uma aspirinazinha salvadora em casa. Como eles conseguiam sobreviver? “E quando está no trabalho, oq eu a senhora faz? Pede licença pra ir em casa tomar banho e fazer escalda-pés?”. Ela respondeu, mais sorridente, que eles não tinha dor de cabeça. “Ah, tá”, eu murmurei ainda boquiaberta, me dirigindo para o banho.
Já com os pés numa bacia de água quente, ela massageando minhas têmporas, me ocorreu uma vaga lembrança que foi ficando mais e mais viva na medida em que eu me concentrava nela. Lembrei que quando eu tinha por volta de sete anos, já tinha crises fortíssimas de enxaqueca que não diminuíam com nenhum tipo de analgésico. Eram tão violentas que eu gritava, chorava desesperada e por fim quedava-me semiconsciente. Mas havia um tratamento infalível: era quando minha mãe ou meu pai deitava minha cabeça em seu colo, colocava as mãos em minha testa, e enquanto oravam ou cantavam alguma prece, acariciavam-na ternamente. Então eu dormia tranqüila, e ao acordar já não sentia nada.

Como quando ela parou de massagear minhas têmporas. Eu estava bem. E refletindo sobre o episódio apreendi algumas coisas do tratamento natural, que listo abaixo sem intenção terapêutica, mas – acredite – com um interessante fundo teológico:

1 – Somos todo, devemos ser tratados como todo – “De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.”(I Cor 12:26). A alopatia é objetiva, vai direto ao ponto se concentra lá, crendo que tratando o mal no local em que ele se manifesta, resolverá o problema. O tratamento natural considera o universo. Não vê uma cabeça com vasos dilatados e doendo, mas uma criança que chora com dor, medo e desespero. Vai tratar da segunda. Acalmá-la, acariciá-la, falar ao seu corpo e espírito por entendê-la completa. Não somos pedacinhos. Desde o mito das almas gêmeas de Aristófanes, muitos insistem em acreditar que são metade, parte quebrada que dói. Mas somos como Deus nos vê: um todo (embora nem sempre bem concatenado). Por isso Ele não acabou com o mal pontualmente quando esse se manifestou. Bastaria uma palavra e o lugar onde o mal primeiro apareceu seria fulminado. Mas isso traria efeitos colaterais profundos para a história da humanidade atingida pela chaga, e o homem jamais teria certeza da justiça de Deus, tal como, no início, não tinha certeza da natureza do mal. Por isso Ele foi além para resolver o problema no todo, na humanidade, mesmo que essa nem sempre O entenda e às vezes O culpe pelo mal que Ele está derrotando (só os olhos da fé podem ver vitória iminente entre tantas feridas). Enquanto isso, no todo de cada homem, nas histórias que formam a História, Deus vai prescrevendo a cura, manifestando Seu amor de forma ao mesmo tempo pessoal e universal.

2 – Os semelhantes foram feitos para os semelhantes – o lema da homeopatia, um dos tratamentos naturais mais difundidos, é “os semelhantes são curados pelos semelhantes”. A alopatia introduz elementos contrários ao mal, com o fim de forçar o órgão a encontrar sua solução. O tratamento natural emprega elementos comuns ao meio em que o homem vive para envolvê-lo a partir daquilo que seu organismo conhece, mas sente falta. Tal como Deus que, para resolver o problema da humanidade, desceu até ela com tudo em comum. “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Isaías 53:4). Resolver as coisas lá de cima, objetivamente, como Deus, seria fácil, rápido mas impessoal. Então ele veio aqui, assemelhar-se. E, inocente, sofrer num corpo frágil as dores e tentações da humanidade inteira... foi difícil. Mas necessário, tanto quanto a cura para nós.

3 – Os semelhantes se unem - Um médico alopata, quando vai tratar do doente de estômago, olha o estômago. Examina o órgão por dentro, por fora, dos lados e dá seu parecer. Médico e paciente continuam a uma distância segura. No tratamento natural, o olhar examina inteiro e comedido, sem pressa e com curiosidade. Há contato (nosso século tem medo disso!) para que haja unidade, e na justa inteireza, a cura. As mãos espalham o ungüento, tocam a pele, os pés tocam a água, os sentidos tocam cheiros, gostos verdadeiros, até o som da voz materna, de uma oração ou música (como eu que hoje administro Mozart para minhas enxaquecas). Os semelhantes se abraçam, sem medo. Tocam-se; no toque se reconhecem. E ao se conhecerem de novo se unem. Tal como eu, que depois de conhecer o amor de Cristo revelado em Seu sacrifício e na intercessão cotidiana do seu sangue purificador, não posso seguir em outra direção que não seja Seus braços, Seu olhar, Sua resposta às minhas dores.

Não pretendo defender a superioridade absoluta do tratamento natural sobre o alopático. Nem que eu tivesse condições técnicas para isso, poderia deixar de admitir que esse último também é importante para solucionar nossos males. Mas ainda que tenha de amadurecer a idéia do parto humanizado, sigo divagando uma vez mais, que este meu frágil limiar para a dor me conduz incontinenti a pensar sobre como Deus revela de tantas formas Seus mistérios de salvação.

Uma semana iluminada,
Luciana Dantas Teixeira

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