Tia Maria tem um pequeno sítio que foi cenário de muitas aventuras em minha infância. Lá minha família se juntava de vez em quando, e era aquele mundaréu de tios, tias e primos se espalhando por todos os lados. Quando criança eu achava aquele lugar enorme, cheio de possibilidades e surpresas. Tinha uma mangueira secular repleta de frutas, um fosso com jacaré dentro, tartarugas perto do rio, uma pequena e misteriosa casa abandonada, uma carroça que nos levava pelo pomar e um caminhão que nos botava o maior medo. Mas nada foi mais mágico que encontrar o forno à lenha perto do pomar, com um caldeirão enorme de barro que era onde se fazia doce. O forno ainda estava quente pois minha tia o tinha usado há pouco. A colher de pau gigante nos tentava, e nós, aproveitando que as mães debulhavam feijão verde mais adiante, resolvemos fazer nosso próprio doce. Mas de que? As goiabas já haviam sido colhidas e as outras frutas ficavam longe. Alguém disse: “mamãe não vai gostar de saber que brincamos com fogo”, mas ninguém o ouviu. Sem frutas, resolvemos pegar as folhas da goiaba e colocar no caldeirão, o que rendeu uma calda transparente muito bonita. Alguém conseguiu pegar açúcar na cozinha e em breve tínhamos nosso próprio doce de folha de goiaba em calda. O gosto era o que menos importava frente à proeza, mas nós comemos. O que não conhecíamos na época eram as magníficas propriedades laxativas da folha da goiaba, o que ocasionou um congestionamento memorável nos banheiros da minha tia.
Eu lembrei desse episódio enquanto lia um trecho de Ana Karenine, de Tolstoi, onde o personagem Levine compreende a extensão da fé em Deus ao lembrar de uma cena semelhante, em que crianças brincavam de fazer doce e jogavam comida fora, ficando zangadas ao serem interrompidas por sua mãe, a qual tentava explicar-lhes porque não deviam fazer aquilo. As crianças permaneciam chateadas e céticas porque não entendiam que estavam destruindo a própria subsistência. “Tudo isso é muito bonito e bom, mas o que nos dão é assim tão precioso? É sempre o mesmo, hoje, como ontem, enquanto que é divertido fazer doces à vela e atirar leite na cara; é uma brincadeira nova e de nossa invenção”. E ele conclui:
“Não foi assim que nós fizemos, que eu também por meu turno fiz, querendo penetrar pelo raciocínio os segredos da natureza e da vida humana? Não é o que fazem os filósofos com suas teorias? Que se deixe as crianças procurarem por si próprias o seu sustento, e em lugar de fazerem brincadeiras morreriam de fome... que nos deixem, a nós, entregues às nossas idéias e às nossas paixões, sem o conhecimento do nosso Criador, sem o sentimento do bem e do mal moral!... Que resultados se obterão?Eu, cristão, educado na fé, cumulado de benefícios do cristianismo, vivendo desses benefícios sem ter consciência disso, e, como essas crianças, procurei destruir a essência da minha própria vida... Sim, a razão nada me ensinou; o que eu sei, foi-me dado, revelado...”
Comparo o pensamento de Levine, para quem o ensino da razão só pode levar a deduções lógicas, mas não ao sentido da vida, ao pensamento de muitos cristãos que tentam espremer Deus dentro de uma lógica. Alguns desses desenvolveram teorias que lhes satisfazem o intelecto enquanto os obriga a ignorar um ingrediente vital para o espírito: o conhecimento de Deus (Filipenses 3:8 – 11). Não o conhecimento que se adquire pela mera reflexão lógica, pois que lógica pode haver no amor? Como achar razão em viver para Deus ao invés de viver para a satisfação das próprias necessidades? Que Deus razoável é esse que entrega um Filho para morrer por pecadores que, em seu natural, ocupam-se de destruir aquilo que lhes é dado? E principalmente, que felicidade é essa que se acha em se submeter à Lei dEsse Deus?
Como percebeu o personagem de Tolstoi, a compreensão da fé e da felicidade em Deus não é para quem raciocina em busca de uma resposta, mas é para quem procura a paz. A partir disso, pode-se compreender a necessidade que temos dEsse Deus e de viver o cristianismo tal como Ele requer. Se assim não for, caímos inevitavelmente na tentação de raciocinar Deus com nossa mente finita em busca de uma espécie de glória própria: “mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor...” (Jeremias 9:24). Uma das teorias que resultam desse esforço vão é o antinomismo, que nega a necessidade da Lei de Deus na vida dos cristãos. É uma teoria já antiga, surgida com o gnosticismo na igreja cristã primitiva, e combatida pelos apóstolos, mas que perdura até hoje. prega que a “intenção” de amor basta para salvar o espírito, e que a salvação prescinde regras de conduta. Assumindo outras ramificações, como o dispensacionalismo, negam a necessidade da Lei de Deus.
Mas quanto mais eu ouço teorias de uma liberdade sem a Vontade expressa de Deus, mais eu lembro do meu doce de folhas de goiaba em calda. A Bíblia em diversas passagens nos apresenta a Lei de Deus como reflexo de seu caráter, e demonstração prática da tal “intenção” de amor (Mateus 5:17; Romanos 3:8-10; Romanos 3:31; I Jo 6:9-11; I Jo 1:8; Salmo 119). Mas além do conhecimento intelectual e moral de Deus, é preciso um conhecimento volitivo, que vem somente pela fé em Jesus Cristo. E é conhecendo-o que compreenderemos na totalidade a alegria de obedecer a Lei de Deus. Veremos o modo maravilhoso como a Lei “desmascara a falsidade do amor que não aceita suas responsabilidades para com Deus e o próximo”¹. Nos descobriremos dEle, tal como Ele nos sabe Seus. E só então deixaremos de querer ter razão para querer mais do melhor conhecimento.
Durante esta semana desejo que compreendamos a amplitude da graça, da paz e do bem que há na Lei de Deus e no conhecimento de Cristo Jesus. Não é maravilhoso? O Gnosticismo (do grego, gnosis = conhecimento) pregava um conhecimento reservado a poucos, alcançado somente por senhas místicas, pelo ascetismo, por um caminho de esforço humano. O Cristianismo são prega um conhecimento que nos é dado a todos de Graça, que transforma-nos para a felicidade e para o amor em sua plenitude. Oremos, pois, como Moisés: “Rogo-te para que me faças saber neste momento o Teu caminho, para que eu Te conheça e ache graça aos Teus olhos” (Êxodo 33: 13)
Uma semana iluminada,
Luciana
¹Comentário da Bíblia de Genebra. Ver. Antinomismo. I João 3:7
quarta-feira, 22 de setembro de 2004
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