domingo, 25 de novembro de 2001

Vicissitudes de uma dona-de-casa

Um dos motivos pelos quais, vez ou outra, minha mãe se aborrece comigo, é a minha completa falta de vocação para o serviço doméstico. Ela é da opinião que uma mulher deve ser antes de tudo, uma dona-de-casa nata, sendo este um requisito imprescindível para que ela chegue a ser uma mulher em toda a extensão da palavra. Nossa convivência tem feito ela acreditar piamente que minhas chances de chegar a tal grau de magnitude são ínfimas, o que me condena de pronto a ser uma eterna adolescente, e não ter competência para ser aprovada como esposa. Precisei morar sozinha um tempo para desencanar dessas idéias, e embora não chegando a ser o modelo de dona-de-casa que minha mãe sempre sonhou, ó céus, eu tentei, eu bem que tentei remediar minha tragicômica atuação. Infelizmente, o que consegui foi colecionar uma porção de pequenos desastres, dentre os quais separei um para lhes falar hoje.

Aqui em casa faz tempo que não entra uma máquina de lavar roupas. Isto é conseqüência da maneira como a última, digamos assim, quebrou. Eu até que gostaria de entrever algum pequeno prazer em lavar roupas, mas o fato é que nunca tive paciência no domínio da água e sabão. Ansiosa por me livrar daqueles fardos (o de roupas e o de encarnar a Amélia em pleno domingo de manhã), eu acho que coloquei muito mais roupas que deveria na cuba da lavadora, e aquilo misturado com uma dose um tantinho assim exagerada de sabão, começou a fazer um barulho cada vez mais estranho. Enquanto eu não me definia quanto ao que fazer, a lavadora começou a pegar fogo.

Meu último teste de QI mostrou um resultado satisfatório, mas naquele momento de medo e confusão, minha atitude foi bem pouco inteligente. Vendo o fogo subir em labaredas cada vez maiores pelos fundos da máquina, eu enchi um balde de água e joguei nela. Uma, duas, várias vezes, e o fogo aumentando, e o plástico derretendo, e o barulho ficando monstruoso, até que eu consegui pensar e tirei o fio da tomada, ao que o fogo cedeu imediatamente. O estado em que a lavadora de roupas ficou lembrava bastante aqueles monstros de filme japonês, depois de atacados pelo robô do bem. Eu me sentia o próprio Jaspion. E minha mãe, mais uma bomba atômica anti-nipônica prestes a estourar.

Desde então, eu tenho me preocupado em combater o mal onde o mal realmente está. E esta é uma regra que se aplica também a nossa vida espiritual: "Pois não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, conta os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniqüidade nas regiões celestes." Efésios 6:12. Aqui Paulo nos adverte que os perigos de verdade estão além daquilo que conseguimos ver, no mundo espiritual, cujos poderes do mal estão empenhando forças para nos derrotar. Eles se arremetem contra os santos, nós que fomos chamados, e que formamos aqui na Terra o que o apóstolo chama de regiões celestes. E aí que o Inimigo ataca com todo seu arsenal de maldades, mesmo que nem sempre estejamos atentos para identificar sua presença e atuação através dos mais diversos agentes, em especial os humanos.

Da próxima vez que você se deparar com um problema, pense na repercussão espiritual que sua decisão perante ele pode ter. Pense que na sua escolha estão envolvidas mais dos que conseqüências seculares, mas muito provavelmente uma eternidade inteira. Medite que seu ato, por menor que seja, pode influenciar direta ou indiretamente a salvação de sua alma e também a de outras almas ao redor. Não estamos isolados no grande conflito entre o bem o mal, somos peças fundamentais deste jogo, e Deus nos ama tanto que confiou ao nosso
arbítrio uma porção de poder sobre a vitória final. Por isso lute contra o problema encarando a sua verdadeira causa e conseqüência, não aja como se tivesse somente de satisfazer a sua carne, nem recue como se apenas ela tivesse de ser salvaguardada. Pense mais alto, e reconheça-se com a responsabilidade daqueles que receberam o
privilégio de se assentarem nas regiões celestes. Não escolha os momentos mais convenientes para ser cristão, porque não é possível fugir da face de Deus: "Se subo aos céus, lá estás; se faço minha cama no mais profundo abismo, lá estás também" (Salmo 139: 8). Antes de olhar novamente o seu problema, lembre-se que "Somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens." I Cor. 4:9, e então decida a estratégia para um bom combate.

Percebe o recado divino? Concentremos as forças no lugar certo. Perdemos muito tempo tentando apagar o fogo, quando o problema está na eletricidade. Desgastamos nossa mente, espírito e coração lutando contra carne e sangue para conseguir alvos humanos. Como representantes das regiões celestes, somos muito mais que isso, e recebemos poder e armadura para lutar de modo a alcançarmos uma vitória muito mais completa e elevada.

quinta-feira, 15 de novembro de 2001

Os Rubens

Vinícius ainda não tinha pronunciado a sentença, mas Lia aprendeu rápido que "beleza é fundamental". Seu maior temor era não conseguir casar e perpetuar a descendência de seu pai Labão, mas como não bastasse ser rejeitadada pela falta de dotes físicos, sua irmã Raquel era muito bela e tinha de fato o amor de Jacó. A história está em Gênesis 29 e nos conta que, com uma ajudinha do pai, Lia conseguiu casar com Jacó, e por piedade divina, já que era desprezada do marido, teve a felicidade de ser fecunda e dar-lhe um filho, a quem chamou de Rúben, "pois disse: O Senhor atendeu à minha aflição".

Talvez por ter nascido como uma resposta à aflição, Rúben também era sensível à aflição alheia, e seu coração gostava de se ocupar do bem. No entanto era um ser humano falho, imperfeito, chegou a cometer tamanho erro que mesmo sendo o primogênito, não recebeu a bênção que lhe estava proposta em sua plenitude. Rúben não fez nenhum grande feito que o tenha colocado entre os heróis bíblicos, mas sua atitude em um dos episódios da sua vida, me convenceu de que ele era uma pessoa boa e que conhecia o amor.

Foi quando viu o seu irmão mais novo, José, em aflição, que Rúben revelou a bondade que havia em seu caráter. Os irmãos nutriam grande inveja de José, e estavam dispostos a matá-lo para não continuarem vendo aquele menino recebendo privilégios do pai, a que eles não tinham direito. E zombavam dizendo: "Vem lá o tal sonhador!" se referindo aos sonhos em que José profetizava sua futura superioridade sobre os irmãos. Ora, Rúbem sabia que não era profeta. Mas como todo homem, também era um sonhador, ao menos no sentido poético da palavra. Não era por causa disso que deixaria matarem seu irmão. Por isso convenceu a deixarem o pequeno José numa cisterna seca, esperando que, depois que os irmãos fossem embora, ele voltaria ali, tiraria José da cisterna e o devolveria a Jacó. Nesse ponto, eu quero me deter num comentário que a escritora Ellen White faz: "Teriam executado seu intento, se não fora Rúben. Ele se negou a participar do assassínio de seu irmão, e propôs que José fosse lançado vivo em uma cova, e ali deixado a perecer, sendo, entretanto, seu intuito secreto, livrá-lo, e devolvê-lo ao pai. Tendo persuadido todos a consentirem neste plano, Rúben deixou o grupo, receando que não pudesse dominar seus sentimentos, e fossem descobertas suas verdadeiras intenções." (Patriarcas e Profetas Pág 211). Quando Rúben voltou José tinha sido vendido pelo seus irmãos a comerciantes ismaelitas, o que o deixou desesperado. Não vendo o José sonhador no meio deles, rasgou as vestes e gritou: "e eu, para onde irei?"

Semana passada, eu o encontro. O Rubens. Tá no plural porque certamente tem o dobro de sensibilidade humana do Rúben. Nos conhecemos incidentalmente numa troca de e-mails e nos reconhecemos amigos de primeira, entendendo um ao outro e partilhando afinidades. 23 anos, gosta de Machado de Assis e Saramago, colabora numa ONG que cuida de aidéticos, e na primeira mensagem se definiu como "baixista de uma banda de rock e ex-adventista". Uma das poucas pessoas com quem já tive prazer de falar sobre teologia, e aprender muito de maneira fácil. A semelhança com o personagem bíblico não está somente no nome, nem no fato dele ser um ser humano imperfeito, mas dado a fazer o bem. O Rubens também "deixou o grupo" porque sentiu que seus sentimentos eram diferentes dos demais. Ele foi atraído por um Homem que falava de amor, bondade e misericórdia, mas cuja doutrina incomodava aqueles que tinham se acomodado em apenas viver suas vidinhas, sem grandes mudanças ou comprometimentos com o próximo, ocupados em satisfazer seus instintos e conquistarem seu quinhão de poder. O Rubens que se apaixonou por Aquele Homem, também se desiludiu ao ver que seus próprios irmãos, criados pelo mesmo Pai, estavam a ponto de eliminar Este Homem do seu meio. Os irmãos de José ao menos tinham uma aversão descarada, estes aqui diziam adorar o Irmão a quem traíam. Toda vez que negavam o amor, esqueciam a misericórdia e preferiam seus próprios interesses à bondade, esses irmãos de Jesus O feriam um pouco e um pouco mais. Este Rubens aqui não conseguiu dissuadí-los de matarem, por seus erros e hipocrisias, a um Ser cujo maior sonho era salvar a todos eles. Mas se afastou do grupo, por não conseguir dominar seus sentimentos de frustração com o cristianismo que um dia idealizou. E eu fiquei cá pensando comigo mesma: e se um dia o Rubens resolver voltar? Será que ele encontrará os irmãos de Jesus - nós, que também nos dizemos seguidores - praticando o amor? Ou não vendo o Cristo Sonhador em nosso meio simplesmente dirá "e eu, para onde irei?"

Essa dúvida me ocorreu enquanto eu lia o parágrafo abaixo, que eu transcrevo de um dos e-mails que trocamos, em que ele expõe com sinceridade sua visão sobre o cristianismo. Entrego-o para a meditação nu e cru, sem cortes, mas com alguns curativos.

"A maioria das pessoas que vão à Igreja não compreendem a essência da doutrina cristã. Em primeiro, acham que a palavra primordial é "não" . Não bebe, não fuma, não ouve música, não dança, não vai a determinados ambientes, não lê determinada literatura, não assiste determinados programas, não come determinadas comidas, não, não, não, não... E a essência do evangelho é a palavra amor. Percebe? Quando Jesus pregava, as pessoas se maravilhavam com a doutrina dele exatamente por isso. Ele pregava o amor, enquanto os religiosos da época pregavam a negação, o medo, o autoflagelo. E hoje ainda é igual. Sabe, existem dois instintos primitivos no homem, que existem em todos os outros animais : medo e ambição. Utilizando medo e ambição, você adestra um cachorro. Você ensina um exercício, se ele faz certo, ganha uma recompensa, se faz errado, ganha um castigo. E funciona! Com o homem é igual, e me cansa, e às vezes até me desilude ver tanta gente manipulada por esses dois instintos. Nunca acredite em alguém que apresenta a religião apenas como uma forma de ambição. "Aceite a Jesus e sua vida vai ser maravilhosa, próspera e cheia de felicidade e de quebra você vai pro céu" nem em quem diga "Se você não aceitar sua vida vai ser trágica, infeliz e de quebra você vai pro inferno." Ambição e medo, percebe? Instintos básicos. Mas a essência do evangelho é o amor, e isso não é nenhum instinto. É Divino. E é a única coisa capaz de nos tornar realmente livres, justos e felizes, porque somente amando é que imitamos Deus."

Só resta a mim olhar dentro dos seus olhos que nunca vi e pronunciar sobre a fé e a forma de amar dos que ele representa, a mesma bênção de Moisés: "Viva Rubens, e não morra; e não sejam poucos os seus homens". Deut. 33:6

Uma semana iluminada.
Luna

domingo, 11 de novembro de 2001

Composição para cordas

Uma das coisas que o interior dos banheiros femininos não permite aos homens perscrutar, é que toda mulher idealiza algo que não pode faltar em sua cerimônia de casamento. Um vestido com cauda de três metros, um bolo de dez andares, damas de honra vestidas de azul-turquesa, ou até (estas declarações são verídicas!), casais de padrinhos soltando pombinhas brancas na hora do beijo. Eu, que não perco um concerto nem pelo-amor-dos-seus-filhinhos, tenho apenas um desejo bizarro quanto ao meu himeneu: suportarei o cerimonial, transformando-o também num concerto. Dos males, o mais bonito! A única ostentação a que me dou direito é a de um belo quarteto de cordas tocando o melhor da música barroca e renascentista, naquela capelinha medieval que há tempos eu namoro.

Aceito críticas das mais românticas. Mas convenhamos, do jeito como a cerimônia religiosa vem se transformando em ostentação social, ninguém pode se espantar de ser recebido na porta da igreja por pajens distribuindo libretos de um concerto para casamento. Se meu íntimo amor pelo moço merece uma cerimônia pomposa, meu aberto amor pelas cordas, muito mais antigo, não merece menos que isso. O timbre dos instrumentos de corda sempre me fascinaram, e minha maior frustração é não tocar nenhum. Até tentei o piano por três meses, e agora, com a ajuda de um professor dedicado e paciente, me aventuro a aprender violão, visto que não se pode ter sido adolescente sem ter ao menos desejado tocar violão. Depois de dois meses de aulas, além de aprender a tocar com esmero o acorde de dó maior, observei algo com tamanha aplicação espiritual que desejo partilhar com vocês.

É difícil falar disso sabendo que este texto vai ser lido por alguns amigos físicos, mas eu quero me arriscar a falar sobre como se comportam as ondas sonoras quando as cordas vibram. Para não passar vergonha, me dei ao penoso trabalho de encarar meu "Os Fundamentos da Física, volume 2", de cujo capítulo sobre som, transcrevo esta pequena explicação: "Qualquer fonte sonora produz no ar vibrações que estimulam oscilação em corpos situados nas proximidades... pois a fonte progressivamente cede energia ao corpo". Significa na prática, que enquanto eu enrolava meu professor dedilhando seguidamente um grupo de cordas, observava que as outras também vibravam, devido ao deslocamento das ondas sonoras das primeiras, que propagando-se pelo ar, faziam oscilar todas as outras cordas, sem que meus incautos dedos as tivessem tocado. E aquela vibração se espalhava pelo violão e pelo meu corpo, transformando-me num grande acorde de dó. Amei mais o timbre daquelas cordas, quando percebi que não contentes em produzir seu belo som, me faziam sentí-lo e propagá-lo, como se alguém o tivesse tocado em mim.

Isso funciona mais ou menos assim: pôr-do-sol de uma bela sexta-feira, seu namorado enfadado de ouvir milhões de acordes de dó, toma o violão de suas mãos e começa a tocar o número 135 do hinário: "Guarda, vê se muito falta para o dia alvorecer...". Você ouve ele cantar com uma doçura tão reverente que não resiste e acompanha: "Alça a voz, alegremente, faz vibrar o próprio céu". Depois repara que um homem desconhecido parou em frente ao portão da sua casa, e da janela da sala você observa o semblante emocionado dele. Talvez ele não conheça a letra do hino, mas seu olhar se enche de um brilho terno: "Vê o Rei em glória infinda, vê o mar como um cristal!". Você sente uma atmosfera celeste ao redor, e sem fechar os olhos percebe que ao seu lado, anjos se juntam ao louvor: "Ouve as harpas, que harmonia! Ouve as hostes a cantar!". O violão dá o último acorde mas vocês dois e o homem, antes de ir embora, permanecem em silêncio por algum tempo, sentindo que o amor que foi cantado ali se propagou para além dos limites terrenos.

A primeira coisa a fazer é se colocar como instrumento nas mãos de Deus. Deixar que Ele transforme você em um cântico novo, tocando seu espírito bem e com júbilo (Salmo 33:3). Quando a sua vida começa a louvar a Deus em tudo o que você é e faz, o amor divino se propaga como onda sonora que faz oscilar e vibrar tudo ao seu redor. E o coração, esse músculo cordial, não pode passar imune ao estímulo.Pessoas que já haviam se habituado ao silêncio triste do desamor, sentirão umas velhas e empoeiradas cordas vibrarem no mesmo tom do amor que você propaga. Surpresas, elas verão acordes soando e sons acordando no sonido certo. Ainda inseguras, elas experimentarão assustadas a invasão das ondas transformadoras, tocando melodias talvez esquecidas. Mas o amor é uma composição para cordas de cuja influência não há quem fuja. Quando você se coloca como instrumento nas mãos de Deus, sua vida é tocada pelas mãos do Instrumentista e atrai muitas outras vidas para as mãos do Regente. E como espetáculo para o universo, Deus apresenta sua melhor performance : você in concert.