domingo, 26 de agosto de 2001

Uma página

"Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E dizendo isto, expirou". As palavras de Lucas 23:46 foram as últimas que ele leu em voz alta antes de deixar a Bíblia sobre a pilha de processos judiciais, e curvar o rosto para esconder uma lágrima tímida.

Eu fiquei alguns segundos sem reação. Estava acostumada a vê-lo sempre sorrindo, com um comentário bem-humorado pronto a ser disparado. De vez em quando cantava o trecho de alguma música que ouvira na festa da noite passada, e brincava com todas as situações, de modo que era impossível para qualquer pessoa ficar melancólica em sua presença. No entanto, naquela tarde, ele havia parado bem na minha frente e perguntado com uma seriedade atípica em seu olhar:

- Me fale de seu Deus. Meus pais já me falaram algo há muito tempo, mas eu nunca de fato O conheci. Não entendo o que você conhece sobre Ele, que te faz recusar ir a todas as festas, ou ir ao bar na sexta-feira. O que você sabe sobre ele que faz você parecer tão decidida em fazer coisas que não parecem inteligentes, como achar divertido passar o sábado na sua igreja?

Esse é um daqueles momentos em que você sente que precisa pensar rápido, mas não tanto que não caiba uma oração nesse pensamento. Eu propus que ele lesse algo comigo, para que descobrisse por si mesmo o porquê desse meu amor que ele considerava tão louco, tão intocável acima de todos os outros amores. Naquele dia a Bíblia estava ali, providencialmente colocada na minha bolsa, e falaria por si própria. Abri-a em Lucas, e pedi que ele lesse apenas uma página, o relato de Lucas 23, que considero o que melhor descreve o sacrifício de Jesus. Enquanto ele lia, eu fazia pequenas intervenções, explicando parte das passagens para que ele entendesse exatamente o quê ali lhe dizia respeito.

Agora ele olhava para mim cheio de perguntas sobre o julgamento, o motivo, com a lágrima na ponta do nariz. "Então é por isso? Você está dizendo que ele fez isso por mim e por você?" Respondi que sim, mas ao contrário do que eu esperava, ele pareceu mais desesperado, triste. Me encarou e disse: "E como você tem coragem de permanecer assim, alegre, depois de saber que matou Jesus Cristo? Pois se ele morreu por nossa causa, todas essas coisas horríveis são culpa nossa, não é? E ele era inocente, você mesma disse! Como pode ficar assim, com esse rosto calmo sabendo que outra pessoa morreu pelas coisas erradas que você fez?" Essas foram palavras de alguém que conhece o peso da injustiça, por enfrentá-la diariamente em seu ofício.

Eu sorri para ele com uma ternura imensa, e imaginei Jesus sorrindo ao nosso lado também. É maravilhoso ver alguém crescendo na Verdade. Peguei a Bíblia e coloquei-a novamente na frente dele. Disse: "Você leu apenas uma página, mas precisa conhecer a história. Há muitas coisas que você ainda precisa saber, então... vire a página!...veja: ´Mas, no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo, levando os aromas que haviam preparado e encontraram a pedra removida do sepulcro; mas ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus´ (Lucas 24:1-3) Elas encontraram anjos que lhes disseram, veja o verso 5 e 6: " Por que buscais entre os mortos ao que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou..."

Nova tempestade de perguntas, dúvidas, e por fim nenhum sinal de lágrima na ponta do seu nariz feliz. Agora ele havia entendido a minha alegria, e partilhava dela, me falando de uma paz que há muito tempo não sentia. O Espírito Santo fez com que ele conhecesse a lógica do amor divino, se apaixonasse pelo Cristo Vivo, dividisse comigo essa loucura celestial. O melhor de sua conversão, foi ele perceber desde o princípio, que nosso olhar é limitado: alcança apenas uma página de cada vez. Ele renasceu entendendo que na outra página há esperança de que "O salário do pecado é a morte, mas (bendita conjunção) o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor." Romanos 6:23

Muitas pessoas não se permitem ir além nem mesmo de uma conjunção. E por vezes choram achando que é o fim da história, quando um mundo inteiro de amor está logo ali, no simples virar da página. Deus, que conhece a nossa história desde o princípio até o fim, sabe que precisamos crescer, e as lágrimas, por vezes, fazem parte desse processo de aprendizado que nos preparará para o que de fato fomos chamados a ser, presenteados a ter. Enquanto você se detém em avaliar suas dores, Ele já está vendo a glória para a qual você foi feito. No virar de uma simples página, sonhos ficam para trás, mas nascem esperanças luminosas. Ficam para trás também, as falhas e perdas que já não podemos remediar, mas que vão sendo docemente encobertas por novas páginas cheias de bênçãos que não esperávamos vir com tamanha perfeição.

No início desta semana, ouça a voz do Espírito Santo uma vez mais. E se você não está contente com a história que tem lido no livro de sua vida, não permaneça chorando, debruçado sobre ela. Já passou o tempo de aprender com sua dor. Vire a página. Você encontrará um amor vivificante. Você merece ser muito feliz.

Uma semana iluminada!

Luna

"Os sonhos que Eu sonho para você
São mais profundos que aqueles em que você está firmemente abraçado.
Mais preciosos que as melhores coisas que você conhece,
E mais verdadeiros que os tesouros que você possui.
Deixe os velhos sonhos morrerem,
Como estrelas que se vão se apagando diante dos olhos.
Então tome o cálice que eu ofereço,
E beba profundamente dos sonhos que Eu sonho para você."

(The dreams I dream for you - Avalon)

domingo, 19 de agosto de 2001

Para salvar

Outro dia li em alguma crônica por aí, uma pergunta perturbadora: Você já presenciou um inseto morrendo de morte natural? Já viu uma mosca, barata ou pernilongo morrendo solenemente de velhice? E as borboletas, passarinhos e joaninhas? Sabemos que eles morrem, e até contribuímos deveras veementemente para o extermínio do primeiro grupo, mas não costumamos cruzar com um desses bichinhos morrendo sem nenhum motivo aparente, simplesmente pousando e expirando poeticamente, do mais profundo de suas entranhas intactas.

Pois esta semana tive o privilégio de presenciar – pela segunda vez! –a morte natural de um desses misteriosos animaizinhos. Eu esperava o leite ferver quando vi a pequena abelha pousar sobre a pia e, cambaleante, cair de lado mexendo sofregamente as patinhas. Me aproximei com uma cara que deve ter tirado a paz do seu derradeiro momento, e investiguei se ela estava machucada. Mas a abelha estava intacta, toda a sua anatomia no mais perfeito estado. No entanto, ela morria a olhos vistos. Então lembrei que não era a primeira vez que isso acontecia...

Há vários anos atrás, eu e minha irmã presenciamos a mesma cena, onde uma outra abelha moribunda protagonizava uma morte agonizante. Nós assistíamos desesperadas o modo como se contorcia, caía, tornava a equilibra-se, para voltar a cair. As patas, inquietas, mexiam como que pedindo ajuda, mas nós não conseguíamos ver nada que pudesse ser remediado. Nenhuma asa faltando, os meigos olhos sãos, o corpo peludo incólume. Foi quando nos demos conta que a abelha poderia estar morrendo de... fome!! Como não nos demos conta antes!! Corremos até o jardim que minha mãe regava carinhosamente todas as manhãs, e arrancamos meia dúzia de suas margaridas preferidas. Colocamos as flores em volta da abelhinha, e empurramos as corolas em sua direção.

Ora, qualquer abelha do Walt Disney acharia aquele pólen suculento, e se fartaria, sorrindo logo em seguida em nossa direção. Mas a abelha se esquivava, arrastava-se com dificuldade contra as flores, recusava o bálsamo que lhe dávamos, o que nos levou a concluir que aquela abelha sofrera uma desilusão amorosa e queria mesmo morrer! Jamais aceitaríamos que ela poderia morrer de morte natural. As flores, com efeito, serviram de coroa ao seu breve e estranho óbito.

Depois de algum tempo, eu entendi que o ser humano não aceita a morte. Há teorias e correntes filosóficas contrárias a esta idéia, mas o fato é que instintivamente buscamos a vida. Nosso corpo e mente estão condicionados para isto. Por isso sempre reagimos em presença da possibilidade de um óbito, não importa o quanto o noticiário das seis a banalize. Quando conhecemos a Cristo, a Fonte de toda a Vida Verdadeira, é instintivo querermos levar todos os seres a viverem também. Nós, que um dia padecemos sob o jugo do pecado e da morte, sabemos e desejamos que outros saibam como é maravilhoso viver em função de uma Eternidade onde haja vida em abundância.

Mas tenho reparado que por vezes agimos como crianças que, sem reconhecer a real necessidade do ser humano, buscam oferecer-lhe aquilo que, acham em si mesmas, dará salvação a quem beira a morte. Podemos até achar que um corpo de doutrinas perfeito, argumentos racionalmente sólidos, e provas de que pertencemos a religião que prega a Verdade, sejam o que haja de melhor para oferecermos aos nossos semelhantes que morrem por falta de cuidados espirituais. Mas embora todas essas coisas sejam importantes, não são a prioridade em nossos dias, onde tantas pessoas perecem por falta de uma única certeza que lhes dê Esperança. Todas essas coisas serão procuradas espontânea e pessoalmente por aquela pessoa que já teve sua vida salva num Nome Renovador: Jesus Cristo.

Não quero contestar a beleza e perfume das flores que temos oferecido como testemunho da nossa fé. Apenas espero que meditemos se elas têm servido às necessidades mais profundas do ser humano, ou apenas enfeitado sepulturas. Vale a pena pensar que, enquanto dois terços da humanidade tenta disputar com quem está a verdade, e se divide, e dissente, e reclama para si a razão de sua crença, um terço inteiro desta mesma humanidade nunca ouviu o nome de Jesus Cristo.

Neste momentos há pessoas morrendo sem que nós digamos a elas Quem é a Vida. Quando elas descobrirem onde está a Vida – pode ficar tranqüilo – elas também descobrirão o Caminho e a Verdade (João 14:6). E plantarão flores sobre a Rocha.

domingo, 12 de agosto de 2001

Na casa do feirante Josimar

Moro numa cidade linda, cuja beleza morena não ouso descrever, já que outros poetas e cantores o fizeram bem melhor antes de mim. E qualquer descrição não vale uma visita a carinhosa Cidade do Sol.

No entanto, apesar de ser filha desta linda cidade – o que justifica qualquer postura esnobe – eu não fui agraciada com a oportunidade de ter por vizinho qualquer um de seus pontos turísticos mais famosos, como praias de beleza estonteante, dunas de encantadora grandeza ou magníficos coqueirais paradisíacos. Na urbanidade provinciana de Natal, restou-me por atração turística, a ver da minha janela, a antiquíssima e tradicional "Feira do Carrasco", do bairro do Alecrim.

Certamente não é a atração mais elegante, tampouco a mais interessante ao contigente de turistas consumidoidos. Mas eu mesma não me animo a promover nenhum "tour" que lhe diga respeito, visto que não me agrada nem um pouco a idéia de visitar-lhe as bancas históricas.

A "Feira do Carrasco" (até pesquisei, mas ninguém parece fazer idéia de onde tenha vindo esse nome), é apenas uma enorme feira, que nos remete fielmente às origens desse costume arraigado na cultura dos povos, retratando com originalidade histórica, os burgos que brotavam marginais aos grandes feudos, inclusive com a sordidez de detalhes medievais. Mas se você dispensa apresentações turísticas, basta saber que tudo isso significa uma balbúrdia incompreensível de gritos, tomates, galinhas, "trombadinhas" e toda sorte de artigos comerciáveis, desde fechaduras até móveis para cozinha. Dizem que você encontra de tudo. Eu nunca consegui andar um terço dela para conferir a validade da afirmação...

Mas todo esse intróito é para tentar justificar um fato que me ocorreu por esses dias. O que mais faria uma mulher de salto alto (!)* e taileur estar andando na "Feira do Carrasco", desesperada, às dezessete horas de uma quarta-feira, e entrar ofegante na casa do feirante Josimar? Bem, eu tentei fazer crer que poderia ser o amor ao turismo histórico da minha cidade, mas desconfio que você já imagine um motivo mais feminino típico, como, uma meia-calça desfiada, por exemplo. Mas eu tinha um compromisso urgente, e... bem, deixemos para lá: isto há de ser uma meditação.

A casa do feirante Josimar é um dos lugares mais requisitados da Feira do Carrasco. Como o próprio nome do estabelecimento sugere, não é apenas uma banca na feira, mas um pequeno comércio em sua própria casa. Toda a família trabalha junta, e o motivo de honra é vender tudo com o preço da Feira de Caruaru.

Me chamou atenção em especial, o filho do senhor Josimar. Enquanto eu procurava uma meia-calça, ouvi um som sofrível de teclado acompanhando uma voz fina e, diga-se tudo, desafinada. Como não gosto de perder uma oportunidade de observar o ser humano, fingi-me compenetrada olhando umas blusas vermelhas, enquanto ouvia atentamente a conversa de duas mulheres ao meu lado, uma das quais dizia:

- E ele agora gravou um CD, o filho do feirante Josimar, tá sabendo?

Pois é! Ele vai se apresentar na igreja amanhã, é lindo ele tocando, todo mundo vai lá.

Foi a vez do pai ouvir e acrescentar seus adendos. Falou com um orgulho tão grande do filho, que faria o Luciano Pavarotti se morder de inveja. Desfilou todos os adjetivos bonitos que conhecia, ao ponto de dar gosto a gente ouvir mais o pai que o filho. O menino tem uns doze anos, e tecnicamente ainda tem que melhorar um bocado. Mas quem se importa? É o filho do feirante Josimar! Ele canta na igreja, todo mundo vai lá ver ele tocando e até cantando. Não precisa nem ouvir. O feirante Josimar tem sorte de ter um filho tão espetacular assim, e não há quem não se convença disso quando sente o amor que aquele pai –e empresário para contatos – transpira por todos os poros.

Neste dia dos pais, eu achei que o feirante Josimar seria a figura perfeita para apontar um Pai que também sente grande orgulho de o ser. "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus; e nós o somos" I Jo 3:1.

Não importa se você não é tão talentoso assim. Se não tem tantos atributos como gostaria de ter. Não há nenhum problema em você não ter dado muitos motivos para esse Pai se orgulhar de você, se tem andado distante dEle. Não importa nem mesmo se você não acredita nEle: Deus te ama e acredita em você! Ele tem grandes planos a dois, e quer sonhar junto com você, participar da sua vida. Não é porque você ou eu mereçamos, não tem a ver com qualquer coisa que tenhamos feito. Ele simplesmente nos ama porque é nosso Pai. Tem orgulho de nós e fica feliz de estar por perto.

Acredite, quando Deus olha para você, sente amor. E é o amor dEle quem nos faz santos, justos e dignos perante todo o Universo. Não deixe de estar com Ele em cada momento desta semana: "Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes com temor, mas recebestes o espírito de adoção, pelo qual clamamos:
Paizinho!" (Romanos 8:15)

*Meus amigos entenderão a exclamação...

domingo, 5 de agosto de 2001

Teopoesia - Como águias

"...Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
(...) Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada."

Reinvenção - Cecília Meireles

Nada mais espantava seus olhos. Eles já haviam visto muito, conhecido além da sua vontade, e agora lhe pesava sobre as pálpebras a sabedoria do bem e do mal. Até achava que não lhe caía bem a postura de "ancião de dias", mas não podia deixar de se sentir assim. Muitos lhe tinham respeito, alguns, estima. Para todos os efeitos ele era apenas uma águia velha.

Leonardo sacudiu as penas com alguma dificuldade e tentou se firmar melhor na pedra onde pousara. Diante de si via os vales que percorrera, e tudo que vivera até aquela momento, o cenho franzido com a ansiedade solene que antecede grandes decisões.

Ele precisava de discernimento e força. Nasceu águia, e como tal, destinado para as alturas. Nunca se conformou com a mediocridade, perseguiu seus objetivos com segurança, determinação e coragem. Não obstante, aprendeu muito cedo que tudo o que viesse a ter, seria dado pelas mãos de Deus. Lutava, deixando que esta vontade imperasse. E obteve muitas vitórias.

Enquanto jovem, conheceu o verdadeiro amor em sua plenitude, por isso era fácil sonhar e acreditar. Tinha fé na verdade e a defendia sinceramente. Assim disposto, deu os melhores anos e talentos de sua vida pelas causas que acreditava, realizou grandes conquistas pessoais, que ao mesmo tempo ajudaram a construir muitos outros que vieram após ele e seguiam-lhe o exemplo. Até queria sentir uma pontinha de orgulho por certas glórias que sua fé persistente lhe proporcionara, mas novamente lembrava que fora Deus quem lhe dera tudo, e simplesmente sorria satisfeito.

Mas vieram também as decepções. Foi traído, atacado injustamente, enganado, ludibriado por semelhantes seus, que muitas vezes professaram compartilhar os mesmos ideais. O perdão passou a ser muito mais uma forma de suportá-los. Enfrentou também tempestades e toda sorte de mal tempo: conseguiu vencê-los, é verdade, mas machucou-se bastante, e a cada nova luta, perdia um pouco mais do seu vigor. Com o tempo percebeu que estava mais sozinho, seus velhos e leais companheiros iam escasseando. Nunca tivera medo de parecer incômodo para defender os princípios em que cria, mas quando jovem isso era encarado como intrepidez, agora, como rabugice...

O cansaço falava tão alto, que ele sentiu ser hora de decidir. Deixar-se morrer, abandonando-se numa derrota plácida? Ceder ao peso dos anos, mágoas, solidão, da sua plumagem obsoleta? Deixar-se conduzir pela mão do tempo, agora seu algoz, e acomodar-se vendo tudo pelo que lutou sendo gradativamente destruído, seus sonhos enterrados, seus ideais pisados, objetivos esquecidos, e as crenças, a verdade que defendera e ajudara a construir, esmagadas aos pés daqueles que, sorrindo-lhe num aceno irônico, decretavam o seu passamento?

Leonardo arremeteu o bico contra a rocha. Sentiu uma dor profunda. Bateu de novo, uma vez mais, e o sangue espirrou. Seguiram-se outras violentas pancadas contra a rocha até que seu bico gasto estivesse completamente estilhaçado. Semanas se passaram e agora um novo bico nascera-lhe. Foi a vez então de arrancar, uma a uma, as suas garras velhas, as quais já estava inutilizadas por não terem corte nem tamanho apropriado. A dor era quase insuportável, mas Leonardo pensava que outras águias já haviam passado pelo mesmo processo de renovação, e assim venceram a morte, vivendo mais vários anos. Ele não queria morrer. Não queria aposentar seus ideais - era uma águia! Nascera para as alturas! E nem tempo, nem decepções, nem qualquer oposição lhe tirariam a ânsia de voar! Enquanto houvesse esperança de viver e lutar, não desistiria.

Para continuar, Leonardo precisou se livrar da parte que havia envelhecido nele. Que estavam gastas e apenas lhe faziam sentir-se incapaz de continuar. Foi difícil e doloroso arrancar de sua própria carne aquela aparência de velhice. Mas valeria a pena. Poderia ser que alguns anos a mais de vida não lhe permitissem ver seus ideais triunfarem, mas ele não se entregaria tão facilmente. Se acomodar era fazer parte do erro que sempre combatera, morrer agora, quando tinha chance de continuar, era envergonhar as crenças que defendera.

E eu confesso-lhe que quero aprender a amar como Leonardo. O que mais explicaria a coragem de renovar-se? Se muitos o traíram, ele jamais traiu seus ideais. Se outros tinham medo, ele continuou a sonhar. Ousou ser ele mesmo, ainda sendo o único a fazê-lo. Nenhum ser sob o céu o viu cair dele, nem abandonar a montanha. Eu, e você também, temos bons motivos para desejar amar assim. Temos um Deus que "faz forte o cansado e multiplica as forças de quem não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços caem de exaustos, mas os que esperam no Senhor..."¹

Uma semana iluminada!

Luna

¹ Isaías 40: 29-31