domingo, 27 de agosto de 2000

Um lugar seguro

“Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.” Salmos 121: 1, 2

Programa típico de paulista para sábado à noite: shopping. E lá estávamos os três sentados numa praça de alimentação de um shopping onde, surpreendentemente, havia vagas no estacionamento. Ainda que não seja o tipo se lugar onde eu me sinta muito bem, me satisfazia com o fato de ser ao menos um bom lugar para observar o comportamento das pessoas.
Na mesa ao lado um casal tentava manter um garotinho quieto, e ele por sua vez tratava de não deixar a comida quieta, fazendo-a voar alegremente pelos arredores. Mais à frente uma loja de decoração onde eu seria capaz de passar horas a fio, mostrava em sua vitrine um crucifixo de prata confeccionado no estilo art noveau, muito lindo. Do meu lado, meu namorado a quem eu acariciava a mão carinhosamente, na minha frente um de-li-ci-o-so beirute que eu degustava com prazer indescritível. E do outro lado da mesa, estava ele, a quem estimo mais do que o desejo de ser sua cunhada possa convencionar, pois desde algum tempo passei a admirá-lo por um conjunto de qualidades que o faz uma pessoa muito especial. Não sei o que deu neles, mas neste dia os dois estavam particularmente sensíveis, de defesas baixas e bem sentimentais. Eu sorria por dentro admirando o momento histórico e ouvia a conversa atentamente, quando o assunto pendeu para a confiança em Deus. Os olhos dele, do outro lado da mesa, adquiriram então um brilho fascinante, prendendo os meus, e sua expressão ganhou uma solenidade irradiante.
- Vou contar para você uma história que eu gosto de contar para aqueles que são capazes de entender o que é confiança em Deus. – disse ele , começando a narrativa- Eu estava morando no sul da Alemanha, um lugar lindo. Abria minha janela de manhã e via um imenso vale verde, cheio de flores, animais pastando, montanhas grandiosas no horizonte... uma paisagem como aquelas que só se vê em quadro do século passado. Certo dia, eu, que já vinha observando aquela cadeia de montanhas há algum tempo, decidi que iria explorá-las percorrendo as trilhas que levam até o pico da sétima montanha. Preparei-me, peguei o material necessário, fui com o carro até o início da trilha e comecei a aventura.
O garotinho da mesa ao lado acabara de fazer uma batatinha frita aterrissar perto do meu pé, mas eu já não lhe dava atenção; minha mente se direcionava para o que ele acabara de falar. “Previsível”, pensei. Já havia observado várias fotos dele e da sua família escalando rochas, montanhas, desbravando trilhas... enfim, não me tinha passado de largo o seu instinto de águia, que nasceu para as alturas. Seu gosto pela aventura nas montanhas é o mais fiel reflexo de sua personalidade: enfrentar os riscos pela ânsia de chegar, alçar vôos que o elevem para além dos limites ordinários, ampliar a visão de sua capacidade pela conquista de novas paisagens. Dei a última mordida no Beirute, que estranhamente perdeu seu sabor, reparei mais uma vez no crucifixo de prata, acariciei mais intensamente a mão de meu namorado, mas continuava presa aos seus olhos, agora cheios de uma solenidade mais densa.
- Quando eu iniciei o percurso o céu estava de um azul encantador e o sol banhava toda a paisagem em redor. O caminho era difícil, pedregoso, por vezes íngreme, mas eu continuava num ritmo compassado e meu espírito elevava-se também à medida que eu subia. Foi quando, tendo acabado de subir a quinta montanha, olho para trás e vejo uma cena aterradora: nuvens escuras e ameaçadoras formaram-se muito rapidamente enquanto eu escalava, e eu sabia que pela forma com que se punham, muito provavelmente eu enfrentaria uma tempestade. Mas uma tempestade, ali, naquele lugar arriscado e vazio? Parei um instante e orei: “Senhor, houve um servo Teu, o qual também atendia por meu nome, que um dia pediu que a chuva não caísse sobre a terra durante sete anos. Eu não Te peço que o faças nem por sete anos nem mesmo por sete horas, apenas Te peço que me leves para um lugar seguro.” Prossegui a caminhada e subi sem muita apreensão as duas últimas montanhas. Chegando ao cume da imponente sétima montanha, me dirigi até os pés de uma cruz de madeira que estava fincada sobre as rochas. Atrás da cruz, dentro de uma lata e enrolado dentro de um plástico, estava um caderno onde se registra o nome de todos que por ali passam. Escrevi meu nome, devolvi o caderno à lata e o guardei aos pés da cruz. O céu veio abaixo!
Esta sua última frase foi dita com a força de uma lembrança viva e de uma emoção ainda mais viva. Estremeci ligeiramente, e instintivamente olhei pela última vez para o crucifixo de prata na vitrine da loja. Meus olhos prenderam-se total e definitivamente aos dele, onde o brilho dera lugar ao que não consigo descrever com outro termo, senão os olhos de ressaca descritos por Machado de Assis: “com uma força que arrastava para dentro como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”. Minha mão prendeu-se à mão de meu namorado e eu permaneci segura a ela enquanto ele continuava.
- A chuva e o vento forte que se precipitou sobre a montanha não me permitiu ir muito longe ou escolher cuidadosamente um lugar. Sentei-me numa rocha próxima, ao lado de um pequeno arbusto, abri um guarda-chuva para proteger-me da água gelada e contemplei a fúria daquele espetáculo. Sentado onde estava , contemplava logo por trás do pequeno arbusto, um enorme precipício... a neve costuma abrir fendas na rocha daquelas montanhas, cortando-as de cima a baixo e formando estes precipícios de altura vertiginosa. Mas não era só a altura a que eu me sentia sujeito a cair que me aterrorizava, todos a natureza parecia compelida a me assombrar. O vento era violentamente impelido contra o precipício, fazendo com que a chuva viesse de baixo para cima e arremessasse elementos indistinguíveis sobre mim... do outro lado, eu via as rochas da montanhas rolarem montanha abaixo, soltas pela força da tempestade, e eu aguardava desesperado a hora em que uma delas me jogaria contra o precipício. Meu rosto contorceu-se de revolta e durante meia hora eu levantei minha voz em brado indignado contra Deus: “Eu não te pedi nenhum grande milagre, apenas que me conduzisses para um lugar seguro! Apenas isso! Sei que és capaz de muito mais, mas não atendesses a uma simples oração que seria capaz de salvar-me a vida!!! Esta tempestade não fará diferença depois que passar, mas e a minha vida? Faz ela alguma diferença para Ti? Importa alguma coisa para Ti que eu viva? Onde estás que não me vês, antes me ignoras no momento em que mais preciso de Ti?” E assim continuei, exaltadamente, até que a chuva passou...
Respirei. Minha memória levou-me até o clamor de Davi: "Rejeita o Senhor para sempre? Cessou perpetuamente Sua graça? Esqueceu-se Deus de ser benigno?"(Salmo 77).
Pude ainda sentir a mão de meu namorado roçar levemente sobre a minha antes de desligar-me de todas as sensações e deixar-me absorver pelos olhos dele que agora continuavam a me prender por uma doçura sacra e sublime.
- Foi somente depois da tempestade que pude analisar e perceber melhor a situação em que eu me encontrava. A calma contrastava com a desordem do lugar, em seus sinais de grandiosa turbulência. Constrangido, cheguei a uma conclusão: Deus atendera minha oração, Ele me levara até um lugar seguro. Reparei que a rocha onde eu me assentara era de fato o melhor lugar para abrigar-se ali, pois estava em um ângulo em que de forma alguma seria atingida pelas outras rochas que rolavam do alto da montanha, e o pequeno arbusto que estava ao meu lado era na verdade forte como uma muralha de aço, pois a vegetação daquele lugar desenvolve uma resistência natural ao vento, que os faz extremamente rígidos e inamovíveis. Ainda que eu me atirasse sobre o precipício, aquele arbusto estava de tal modo colocado que eu ficaria seguramente preso a ele. Dirigi nova oração a Deus, pedindo-lhe perdão por minha falta de fé, por minha visão limitada e meu desespero que me impedira de ver Sua providência... mas ainda estava muito emocionado pelo medo. As trilhas poderiam estar muito danificadas e o terrenos estava sujeito a avalanches. Confessei-me fraco e pela primeira vez em minha vida pedi a Ele um sinal de que poderia voltar seguro para casa: “Senhor Misericordioso, eu só descerei a montanha se Tu me deres um sinal e fizeres com que essas nuvens dêem lugar aos raios do sol.” Esperei mais meia hora e vi um raio de sol penetrar os densos cúmulos indo incidir sobre uma montanha ao longe. Insisti: “Senhor, para mim este ainda não é o sinal, me mostra de maneira mais clara que Tu estás comigo!”. No mesmo momento, as nuvens abriram-se em cima de mim e um feixe luminoso do sol atingiu-me diretamente, como se os olhos de Deus enfocassem o meu ser. “Agora sim, Pai, eu irei seguro”.
Neste ponto nossos olhos estavam tão cúmplices que eu senti-me banhar nas lágrimas que começaram a brotar naquele olhar. Emocionei-me especialmente por identificar aquela experiência com a minha própria caminhada cristã. Como é duro, íngreme e pedregoso o caminho que leva até a cruz no alto da montanha! Mas prosseguimos, sem desanimar, confiantes, mesmo que às vezes essa confiança esteja depositada sobre nossos próprios méritos. É porém quando sentimos a glória de termos chegado no cume da montanha, no auge de nossa estabilidade religiosa, quando achamos que não temos nada mais a aprender porque já estamos seguros de que nossa fé está estabelecida, concluída, conquistada (e registrada no livro de membros da Igreja), vem a tempestade... que agonizante é sentir que tudo ao redor desaba e se abala frente a nossa inerte impotência! Que humilhante é reconhecer que ainda há um longo caminho a ser percorrido e nossa fé e segurança não estão protegidas por nossa auto-suficiência! Quão desesperados ficamos ao percebermos que não conseguimos sentir Deus tão perto quanto gostaríamos - e poderíamos ter aprendido a sentir... mas Ele está ali para nos dar a segurança de que precisamos e fazer-se conhecer como Senhor de nossa existência, como Rei Protetor de nosso caminho. Ele está bem perto para provar-nos que Ele não abandona seus filhos, antes lhes está provendo um lugar seguro na tribulação, e a vitória, que é dada ao que deposita a confiança em Suas mãos.
É... meus princípios anti-capitalistas que silenciem, mas foi num shopping que eu ouvi ser proferido, com poder, o testemunho mais forte que já ouvi.
Uma semana Feliz e iluminada!

Lux Lunae

Ps.: experimentei revisar o texto ao mesmo tempo que ouvia ária de baixo “For behold darkness shall cover the earth”, do “Messias” de Haendel, que já estava mesmo na minha cabeça enquanto eu escrevia o final do texto... gente, só posso dizer que foi uma das coisas mais emocionantes que já senti. Vai como sugestão.

domingo, 20 de agosto de 2000

Magnetismo enigmático

“E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim.” Jo. 12:32

Então a temida pergunta veio, em Arial Black, fonte 16:

PQ????

Ai, ai, ai... naum faça isso comigo... vc sabe como eu me inquieto diante de “porquês” , ainda mais quando eles dizem respeito ao ser humano...

Lux, entaum me ajude...me ajude a entender isso! Naum eh justo!
Ateh agora soh encontrei uma explicaçaum: estou velha, velha e feia, e com a crise mundial de homens no real sentido da palavra, eu virei mercadoria obsoleta, de terceira maum... e em breve de terceira idade :-((((

...pf, naum diga q vc aprendeu esse dramatismo de mim...:-)

amiga... naum tou brincando! Lembra daquela ilustrçaum q uma vez vc me contou? Qd eu tava c o Rick eu estava na fase do “muitos seraum chamados e poucos escolhidos”, agora estou na fase do “o q vier ateh mim, de modo algum o lançarei fora...” e ainda assim naum aparece uma alma caridosa q me note!

calma lindinha.. quem sabe vc naum encontra um varaum q esteja na fase do “vinde a mim todas vos q estais cansadas e oprimidas” hehehehe deixe de ser taum trágica! Q livro vc anda lendo? Noite na taverna? Cruzes! Vc eh muito linda, inteligente, e capaz de ter qualquer homem q quiser, sua boba.

muito engraçadinha, continue zombando do meu drama...naum fuja do assunto, sra. Desvendadora de pqs... me explique: passsei dois anos namorando o Rick e durante esse tempo os homens viviam me paquerando. Na faculdade, na igreja, no trabalho, eu ficava quietinha na minha, mas parecia que tinha um imã q atraía eles... recusei trilhões de pedidos p sair, joguei fora convites p lugares maravilhosos, esnobei elogios, declarações de amor... eagora, seis meses depois de ter terminado o namoro como Rick parece que ninguém mais quer saber de mim. Pq as pessoas soh parecem olhar p gente qdo estamos comprometidos???
Pq vc naum tenta uma reconciliaçaum com o Rick? Ele gostava tanto de vc! Foi vc q se empolgou demais como assédio, achando q era a rainha da cocada preta e desprezou o q ele sentia por vc, achando q poderia aproveitar um pouquinho de cada um dos seus fãs...

puxa, sua sinceridade me assusta... mas foi isso mesmo.. o problema eh q agora nem o Rick me quer mais :’’-((
Esta conversa se estendeu noite adentro na telinha preta do ICQ. Minha deprimida amiga, quando permitiu cessar suas lamúrias, juntou-se a mim na procura de saber o que havia de errado. Fisicamente ela é muito atraente, é uma pessoa culta, simpática, cristã e uma série de adjetivos que não justificam essa solidão. Chegamos a uma conclusão interessantíssima que não apenas explica o motivo dela só atrair admiradores quando está comprometida (algo que eu já ouvi muita gente além dela questionar), como também nos remete uma importante lição espiritual.
Você já reparou bem nos olhos de uma pessoa que está amando? Já percebeu como essas pessoas costumam estar com a auto-estima lá em cima e consequentemente procuram se vestir melhor, cuidam mais da aparência física, sorriem com mais freqüência, estão sempre entusiasmadas e ficam mais carinhosas, sensíveis e compreensivas? Uma pessoa que se descobre amando de verdade não desanima fácil, e se o faz não se deixa abater por completo porque sabe que tem uma fonte de amor que lhe suprirá as energias, alguém que de quem vai receber cuidado, carinho e um monte de coisas boas que vão lhe “recarregar as baterias” para enfrentar o que quer que seja. Você nunca verá uma pessoa que ama encarando as coisas de maneira negativa, pois seu consciente e inconsciente, seu corpo, seus gestos e palavras são tomados por uma involuntária expressão de felicidade e completude. Sua paz não é minada porque há sempre o farol do ser amado apontando como luz fulgurante no horizonte...
Por outro lado, uma pessoa que não ama alguém, ou que enfrenta sérios problemas no relacionamento pela ausência do amor em uma das partes (ou em ambas), terá uma inevitável postura de tristeza. Uma pessoa que não tem o toque inefável deste sentimento supremo em sua vida, acaba por encarar as coisas de maneira fria, amarga, negativa. Não raro passa a transmitir aos poucos que se dispõem a ouvi-lo quilos e quilos de fel, lamentações, tormentosas mágoas, lacrimosas concepções sobre o mundo, os homens ou mulheres, sobre si mesmo. Quando não é dado a se abrir facilmente, se isola dentro de si mesmo, desenvolve um egoísmo rígido, uma atitude inexpugnável diante dos sentimentos, e transmite aos que lhe cercam uma aparência de insensibilidade e inacessibilidade. Em ambos os casos, a reação natural das pessoas é de repulsa, senão vejamos: qual das personalidades lhe parece uma boa companhia, a do parágrafo anterior ou a deste parágrafo?
Está então explicado o magnetismo enigmático que flui dos seres que estão amando. O amor atrai as pessoas, sua influência é como aroma suave que inebria aqueles que entram em contato com ele. Vivemos em mundo de pessoas sequiosas por sentir o amor, que trazem dentro de si a busca por algo nobre, verdadeiro, algo que lhes dê alívio, conforto, que mude suas vidas no sentido de uma felicidade satisfatória. Quando as pessoas percebem que há um ser que provavelmente descobriu o caminho, elas vão imediatamente procurar estar junto desta pessoa para vir a ter as mesmas características que emanam dela. Por sua vez, a pessoa que está atraindo sente que o faz, sente que estão se aproximando dela e sua tendência é dar amor aos que a buscam, pois este não é um sentimento egoísta que se guarde. Detalhe: esta série de matéria férrea que circunda o campo magnético do amor não é só pessoas, mas projetos, investimentos, tudo aquilo que por influência do amor passou a crescer também, coisas que chamaremos de “pequenos amores”. O único perigo está em ocupar-se em suprir o amor de todos que se lhe pedem, e esquecer da fonte do amor... esquecer a pessoa que tornou esse sentimento capaz e deslumbrar-se com o fato de ser um imã tão poderoso... se isso acontecer, virá a traição: convencida que esta atração é produto de si mesma, a pessoa requererá os méritos por isso e para receber tudo que têm a lhe oferecer, passará a envolver-se e doar-se aos “pequenos amores”, numa intensidade que acabará por afastá-la em definitivo da fonte do amor. O resultado é triste: acaba o amor, pois não há mais fonte que o renove, a atração exercida, consequentemente, acaba também, e os que antes buscavam aquele ser, agora o deixam porque sentem que ele não tem mais nada a oferecer, portanto não merece receber mais nada também, os projetos envolventes que iam tão bem vão lentamente perdendo a rentabilidade e a importância. E aí vem a solidão e a amargura de não ter um amor nem mais nada por que valha a pena lutar.
Não é difícil encontrarmos uma aplicação espiritual para esta situação. Você, como eu, provavelmente sabe bem que a expressão de um cristão que vive o seu primeiro amor com Deus é fascinante. E ambos sabemos que atração fantástica acabamos por exercer nas pessoas que entram em contato conosco, como tudo em que nos empenhamos parece sair muito bem, como num instante surgem cargos na igreja, pessoas não cristãs se aproximam de nós, pessoas da igreja passam a nos devotar admiração, nossa é tudo tão .. envolvente! Por isso mesmo não podemos esquecer de manter constante contato coma fonte de nosso amor, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. O fato de atrairmos “pequenos amores” e o distribuirmos abundantemente não pode fazer com que o nosso amor com Deus seja menos total, único e central.
O amor desperta energias e reservas afetivas, as quais, se não fosse por ele, permaneceriam inutilizadas. São elas que abrem, depois, à pessoa, possibilidades insuspeitas de uma atração magnética , forte e frutuosa com os “pequenos amores”. Sendo assim, lembremos: é possível amar diversas coisas e pessoas ao mesmo tempo, mas só é possível devotar paixão fiel a uma, a quem se busca constantemente como fonte de toda a capacidade de amar. Que esta seja nossa história de relacionamento com Deus, para o qual Jesus, cheio de amor, um dia nos atraiu.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 13 de agosto de 2000

O paradoxo do insubstituível

“A alma farta pisa o favo de mel, mas à alma faminta todo amargo é doce” Prov. 27:7

Você pega o ônibus lotado às sete da manhã e alguém resolve pisar no seu pé, bem em cima daquela unha encravada. A dor parece subir pela garganta, passar pelas cordas vocais e querer sair numa explosão verbal nada delicada, mas você trava o impulso e retribui com um sorriso amarelo o “desculpa...” do desastrado. O celular toca e você o atende rapidamente para esquecer da dor que ainda lateja no dedo atingido. Chega ao trabalho e cumprimenta a todos com um sorriso entusiástico, mesmo aqueles a quem você é totalmente indiferente ou outros que você suporta com desprazer. Seu chefe o chama para uma pequena conversa e você sofre cada segundo da presença dele, que descarrega toneladas de cobranças, pressões , prazos, exigências em cima de você, mas seu sorriso está sempre lá, e todos os seus gestos são do mais fiel assentimento. Felizmente o celular toca mais uma vez e você tem um pretexto para encerrar a conversa. Seus colegas o chamam para almoçar num restaurante que acabou de ser inaugurado e você aceita: quase não consegue disfarçar a palidez na hora que vem a conta, mas assina o cheque sorrindo, afinal, a comida valeu a pena e foi bom estar com a turma. Voltando para o trabalho, você é chamado pelo chefe novamente que lhe dá uma advertência por você ter esquecido de apresentar um relatório, ao que você se desfaz em rogos, desculpas, perdões e promessas de que tudo será reparado e esse fato nunca mais acontecerá. Fica muito chateado consigo mesmo, e durante o caminho de volta no ônibus lotado, vai o tempo todo se culpando.
Enfim, chega em casa. Hora de tirar a máscara. Você dirige toda a sua atenção para três vontades: banho, comida, cama. Se é solteiro, procurará fugir das reclamações da mãe, que parece sempre encontrar defeito em tudo que você faz. Fica na defensiva... quando ela puxa conversa, você pensa numa saída; já suportou muito problema por hoje,não está nem um pouco a fim de pensar nas complicações que ela inventa. Então corta a conversa, dizendo bem sério que ela sempre consegue adivinhar o pior momento de lhe falar: ligou uma vez em pleno ônibus lotado, outra vez conseguiu atrapalhar uma importante reunião com o chefe, e agora não percebe o quanto você está cansado e chateado com seus próprios problemas, que não são poucos. Você não tinha intenção de magoá-la, mas acabou fazendo... enquanto ela sai de cara feia, você pensa que depois ela esquece e vai ficar bem... pelo menos você conseguiu um pouco de descanso. Seus irmãos perguntam se você comprou ou pagou algo que estava sob sua responsabilidade... “ih! Esqueci!”. Decide comprar um remédio para memória, mas não perde a chance rebater as reclamações deles e vocês acabam discutindo feio, as acusações e ironias se intensificam e no fim todos estão chateados. Você decide ir dormir, sem se preocupar em como eles estão se sentindo, afinal eles vão estar sempre ali e amanhã parecerá que nada aconteceu. Além disso, você tem coisas mais importantes para lembrar e com que gastar seu dinheiro... se você é casado, a esposa toma o papel da mãe e os filhos ficam no lugar dos irmãos.
É certo que, felizmente, existem pessoas que fazem exceção a esses acontecimentos, mas via de regra nós nos encaixamos neste modo de agir. O que faz nosso comportamento ser de um jeito com as pessoas que não conhecemos e de outro, oposto , com aquelas que estão bem próximas a nós? Por que as que significam mais em nossa vida são normalmente tratadas de forma mais rude, e acabam recebendo toda a descarga de tensão que acumulamos ao engolir os aborrecimentos das pessoas por quem não sentimos nada de especial? O que nos faz sentir tão livres para magoar a quem amamos com frequência, enquanto parecemos amordaçados na hora de reagir à injustiças de quem não nos tem nenhum sentimento profundo? Por que será que a mínima indelicadeza dos familiares, cônjuges, ou amigos com quem temos mais intimidade nos parece motivo para uma catástrofe indizível, enquanto grandes e pequenas ofensas dos indivíduos com quem travamos relação superficial são suportadas com um agonizante sorriso no rosto? A resposta para tudo isso está numa única assertiva: o amor insubstituível nos assegura que ele sempre estará lá.
Intimamente sabemos que as pessoas com quem nos relacionamos há mais tempo, com as quais partilhamos nossa intimidade e verdade estão seguramente “presas” a nós. Não precisamos conquistá-las, não há motivo para preocupação quanto ao mantê-las junto a nós: estas pessoas conhecem o que há de pior em nós e ainda assim nos aceitam plenamente, nos amam verdadeiramente e sempre nos perdoam. Sabemos que se as magoarmos, ferirmos, isso não será suficiente para diminuir o sentimento delas por nós, que excede qualquer entendimento (muito embora pouco nos preocupemos em entender o amor com que somos amados). E o que leva essas pessoas a ter um amor tão incondicional não é nenhuma tendência masoquista: elas estão sempre ao nosso lado porque nós somos INSUBTITUÍVEIS para elas, elas nos perdoam tão facilmente pois a felicidade de nossa presença supera nossa capacidade de fazê-las sofrer, elas passam além de nossos defeitos, não por causa do vínculo familiar ou do vínculo conjugal, mas pelo amor, que é o vínculo da perfeição(Col. 3:14).
Todos os outros relacionamentos são jogos de interesse em que não há segurança, apenas o cumprimento de um dever, seja ele a subordinação, a educação, a praxe. Forçamo-nos para que não apareça nossa face real, mas aquilo que queremos que as pessoas pensem de nós, até que consigamos conquistar nosso objetivo com, ou através daquela pessoa. E é assim que um namorado compreensivo e gentil pode se transformar num marido autoritário e bruto, que uma namorada doce e virtuosa pode se tornar uma esposa insolente, caprichosa e indiferente, ou ainda é assim que se explica como uma mesma pessoa pode parecer ao mundo ter qualidades que somem quando deveriam ser exercitadas justamente com os que lhe têm mais afeto. De outro modo, como se explicaria o fato de que somos capazes de varar madrugadas ouvindo e dando a maior força com os problemas e lamúrias de um amigo com quem não convivemos intimamente, mas nos impacientamos quando os que nos amam partilham sua tristeza conosco e não raro os abandonamos a sua própria capacidade de reagir, como se aquilo não tivesse nada a ver conosco? Ou, questiono-me, nos relacionamentos em que nos sentimos seguros, ostentamos veementemente a bandeira da liberdade de sermos e fazermos o que for de nossa vontade, mas engolimos quietinhos toda cobrança e imposição quando isso se nos apresenta como preço de nossas conquistas? O valor que demostramos pelo superficial por vezes supera o que demonstramos por essas pessoas, a quem só descobrimos a importância exata quando vimos a perdê-las...
Pensemos agora verticalmente. O amor com que Deus nos ama é extremamente pessoal, porque somos para Ele criaturas insubstituíveis. Quem ainda não sentiu Esse amor, regozija ao descobri-lo; quem já o provou sabe a maneira específica com que Ele se manifesta na vida do que crê. Aquele que já desvendou o real caráter do amor de Deus, que já foi perdoado e sentiu o amparo e proteção dEste Deus que, não importa quão sujos e pecadores somos, continua a nos amar fortemente...aquele que tem na sua vida o testemunho destas coisas, sabe em todo o seu ser, a todo tempo, que está seguro nas asas deste amor pelo insubstituível. Mas - infeliz paradoxo – são justamente os que já sentiram este amor, que tendem a não cultivá-lo como ele merece. Ora, sabendo-se que Deus é eterna misericórdia, que é onipresente e nunca falha quando nós falhamos, nos enchemos de uma segurança perigosa que pode nos levar para longe deste amor: o amor de Deus está sempre lá, Ele não vai perder-me de vista , então está tudo bem, não importa o que eu faça ou deixe de fazer. O que não nos apercebemos é que o amor só toca o que está na sua esfera de alcance, e embora ele exista latente no seio de quem ama, o ser amado ausente, distante e que se afasta voluntariamente mais e mais do amor, terá apenas a sua lembrança, mas não mais a sua atuação. E então virá a dor de ficar de fora de algo que parecia tão certo que nem precisava ser buscado.
Valorizemos o amor de quem nos considera insubstituíveis. O mínimo que pode acontecer é nos tornarmos menos egoístas e crescermos mais eficazmente com a experiência de amar. O auge será descobrirmos a felicidade completa, atingida quando decidimos colocar este amor acima do que não vale a pena (e isto inclui nosso eu). O máximo que irá acontecer... bem, nós temos uma eternidade inteira para descobrir...
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae

domingo, 6 de agosto de 2000

Dos rótulos

“Senhor, tu me sondas e me conheces.” Salmo 139:1

Dez meses de uma feliz amizade e chegamos à conclusão que o namoro seria uma ótima opção para nos tornar ainda mais felizes. Como estávamos enfrentando uma série de barreiras, esta decisão foi cautelosa e um pouquinho demorada, até estarmos seguros que o alicerce estava bem firme... . Durante este tempo de “preparação do terreno”, por algumas vezes ele me perguntou se tal situação – estar ciente de meus sentimentos e dos dele e não poder expressá-los publicamente – não me incomodava. Eu respondia sempre que o importante eram exatamente os nossos sentimentos, e não o rótulo que nos descreveria frente às pessoas. No dia em que, finalmente, sentimos que havia chegado a hora de assumir o namoro oficialmente, eu demonstrei tamanha alegria, euforia e felicidade que ele me perguntou: “Será mesmo que os rótulos não são importantes?...”. Na hora fiquei tão encabulada que respondi qualquer coisa com ares de desculpa esfarrapada, mas hoje, repensando o episódio, acho que lhe responderia: “rótulos não são ruins, desde que não enganem quanto ao conteúdo!”, e minha felicidade traduzia justamente o saber que no nosso caso, o rótulo ainda era insuficiente para descrever a qualidade do conteúdo, hehehe.
Relembrei este episódio enquanto me dirigia para o primeiro dia no meu primeiro emprego (na verdade, quase isso.. um estágio) aqui em São Paulo. Eu percebi que meu andar estava diferente, mais firme, minha postura mais confiante, olhei-me no espelho e me achei até mais bonita e a explicação para isso era óbvia: agora eu tinha uma função... um rótulo! Passei a meditar na importância que as pessoas dão aos rótulos, como se fossem eles, e não elas próprias, que demonstrassem sua capacidade como seres humanos.
Lembrei de um fato constrangedor acontecido em certa escola sabatina. O professor perguntava à classe, o emprego de cada membro, com o fim de fazer uma analogia entre a diversidade de funções e a diversidade de dons. Certa senhora no entanto, permaneceu calada quando chegou a sua vez, e era visível como estava incomodada, constrangida, perturbada. Depois de alguns instantes, o professor, com muita habilidade e gentileza, descobriu que ela era uma dona-de-casa...o fato de não ter o rótulo de um emprego em meio a uma classe cheia de professores, engenheiros, pastores, contadores, secretários, etc, abateu visivelmente aquela mulher, ainda que várias pessoas lhe dissessem que ser dona-de-casa é uma bonita e importante função. Esse incidente por sua vez, me fez lembrar de outra certa dona-de-casa, a senhora Brown, que ao também ser perguntada sobre o que fazia da vida, respondeu satisfeita: “Exploro o desconhecido”. A diferença marcante entre as duas mulheres está que a última renova sua satisfação, no ato de descobrir novas facetas sobre sua capacidade, está livre para ir além dos limites. A primeira é dependente de uma função para revelar sua capacidade, para sentir que existe, para afirmar-se, enfim, tornou-se escrava dos rótulos pois se apoia neles para mostrar sua personalidade.
Mas afinal, quais as causas e consequências da dependência de funções rotulatórias? Analise comigo a vida de Tribufólio Cunegundes.
Tribufólio era um jovem, cristão novo, adventista convicto, tímido porém muito dado a realização do bem pelos outros. A profissão de Tribufólio... bem, digamos que ele era um olhador de nuvens sem responsabilidade meteorológica. Embora introvertido, ele gostava de lidar pessoalmente com as pessoas, seu problema estava apenas em encarar grandes grupos. Sabia dar estudos bíblicos e conduzir facilmente as pessoas a tomar decisões, pois era um observador detalhista das necessidades de seus estudantes. Também sabia cozinhar e quando ia preparar sua comida sempre fazia algo para oferecer aos vizinhos, que lhe tinham grande estima e respeito. Os que o conheciam o olhavam como um rapaz prestativo, íntegro, sensível às dores alheias, discreto e digno de confiança. Mas Tribufólio não estava satisfeito. Ele no fundo sabia que era inteligente e possuía muitas qualidades, mas ninguém parecia valorizá-lo por isso! Ele se sentia só mais alguém na multidão, sem nada de concreto que pudesse mostrar às pessoas o quanto ele era especial. Começou então por realizar um projeto profissional: se tornar um advogado, para que todos pudessem reconhecer seu valor na ajuda às causas alheias, dos desfavorecidos e necessitados. Fez, ou melhor, sofreu um curso de oratória e passou a dedicar-se a aprender técnicas que o fizessem expressar com eloquência sua idéias. Suando em bagas, pediu ao ancião uma oportunidade para pregar, num culto de quarta-feira de cinzas em que metade da igreja estava num acampamento e a outra metade não era a mais assídua... enquanto isso estagiava num escritório de advocacia para pegar todas as manhas da profissão, e por vezes , decepcionado, constatava que seria um pouco difícil manter seu ideal de justiça e integridade para ajudar as pessoas... Em poucos anos, Tribufólio se tornou o “doutor Cunegundes”, ancião da sua igreja e um advogado especializado em Direito Internacional, trabalhando em uma poderosa empresa do bloco Mercosul, afinal, ajudar as pessoas seria afundar no Direito das massas que em nada compensa. Como ancião cheio de problemas administrativos para resolver, não tinha mais tempo para dar estudos bíblicos, muito embora mantivesse, como alívio de consciência, sua pasta de sermões sempre atualizada. Estava consciente que não pregava tão bem quanto fazia o evangelismo pessoal, mas muitas pessoas o cumprimentavam dizendo que seus sermões era inspirados... o que Tribufólio não atentava é que ele fazia tais sermões exatamente com o intuito de agradar aos ouvidos dos que o cumprimentavam... ele necessitava desses elogios para se sentir valorizado. Triste nominalismo a que se reduziu o antigo cristianismo de Tribufólio... agora ele mantinha em dia o bonito quadro com o número de pessoas batizadas; quadro que ele mesmo escolhera combinando com a decoração da igreja, pessoas que estavam com todas as fichas batismais devidamente organizadas, preenchidas e arquivadas... e que não eram, nem sequer uma, fruto da influência dele. Como bem-sucedido homem de negócios, ele contratou uma cozinheira muito boa, mas não lembrava mais de dividir as delícias culinárias que degustava. Reformou e ampliou a casa e colocou um eficiente sistema de segurança em todos os muros – agora bem mais altos. Certo dia percebeu que esquecera o nome dos vizinhos, mas não se perturbou pois provavelmente não teria mesmo oportunidade para falar-lhes. Os que o conheciam bem agora, eram seus colegas de trabalho, que lhe cumprimentavam por sua competência profissional, sua imparcialidade, sua racionalidade e frieza para lidar com as situações propostas... o “doutor Cunegundes” sorria-lhes satisfeito, mas de vez em quando, sozinho no seu mega-escritório, sentia saudades do que já não era: um homem íntegro, prestativo, sensível e digno de confiança. Agora ele tinha os rótulos que havia sonhado... e uma úlcera no estômago.
O drama de Tribufólio se repete cotidianamente entre nós. Pessoas como ele estão sujeitas a pior condenação a que poderiam se impor: a escravidão do rótulo. Tais indivíduos vestem o rótulo como uma pele de que não podem se livrar, e que necessitam para serem supridos emocionalmente pela valorização alheia, já que não aprenderam a se auto-valorizar ou a discernir os valores mais importantes. Buscarão com ansiedade desproporcional o resultado excelente em tudo que fizerem, dando excessiva importância à situação em que o eu se exibe, afinal, é a valorização alheia que garantirá seu valor como pessoa. Se não conseguem se sobressair, sentem-se inúteis... no caso de Tribufólio, sendo um homem tímido, ele expressa sua depressão com frases de auto-compaixão, lamentos e afastamento da situação. Se fosse um tipo colérico, agrediria a situação, com palavras de orgulho, auto-afirmação, ou descarregando em cima dos outros. Tais pessoas acabarão por tonar-se pouco criativas e adequar-se ao que os outros esperam delas, entregando suas vidas e paz ao julgamento dos outros, como que lhes mendigando estima. Com o tempo, deixarão de explorar suas próprias qualidades, para desenvolver aquelas qualidades mais cotadas, mais evidentes, mais em moda, acabando por renunciar parte de si mesmo, senão a melhor parte...
Acho que não há muito que ser comentado a respeito desse insidioso mal. Felizmente temos um Deus que não mede nosso caráter pela quantidade de resultados concretos que fazemos, que não nos julga pelo consenso social, que nos identifica como almas filhas , e não pela função, profissão, nome, títulos, posições ou qualquer outro rótulo que venhamos a ter. Como muitos discípulos ao longo do tempo, talvez tenhamos até de sacrificar alguns rótulos bem quistos, em prol dos interesses do Reino...
Chegando ao escritório de advocacia, toco a campanhia mas é um som mais forte que ouço ressoar dentro de mim. E ele diz: “rótulos não são ruins desde que não enganem quanto ao conteúdo!”. Pois nada engana Aquele que nos sonda e nos conhece.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae